Quando o Brasil retomou a democracia, com a derrota do regime militar, foi elaborada uma nova Carta Política, a Constituição Cidadã de 1988.
A partir da CF de 88, uma das tarefas assumidas pelas forças do campo democrático foi a remoção do chamado entulho autoritário, assim denominada a legislação infraconstitucional que serviu de base para a ditadura militar legitimar-se sob o ângulo formal-jurídico e sustentar seus atos como dentro da “ordem legal”.
Mas esse entulho autoritário, na verdade, é mais amplo do que um amontoado de leis. Ele também abarca comportamentos, valores, saberes e visão de mundo. Há, portanto, um entulho autoritário cultural, complexo e de difícil remoção, muito por conta de sua natureza imaterial, ligado ao ânimo (a alma) e ao acúmulo de conhecimento das pessoas.
O entulho autoritário cultural milita pela solução dos conflitos sociais, econômico e políticos mediante o uso da violência estatal, sem a mediação pela aplicação de regras e práticas democráticas. Tudo se resolve no “grito” e pela força. E se isso não bastar, aí vai-se às prisões arbitrárias, à violação de direitos civis básicos, aos sequestros, à tortura, ao assassinato e à ocultação de corpos! Nessa percepção de mundo, há um aviltamento do próprio processo civilizatório e uma descrença em relação à efetividade dos direitos humanos.
O movimento misto de caminhoneiros autônomos e empresas de transportes – os assalariados destas empresas não paralisaram por melhorias de seus salários, mas a mando do empregador – foi mais locaute do que propriamente uma greve, o que não retira sua importância. Porém, para além da luta justa contra a política de preços de combustíveis adotada por Parente e Temer, o movimento de paralisação que atuou na semana passada foi portento em trazer às rodovias o que restou do entulho autoritário cultural relativo ao tenebroso período da ditadura militar de 1964.
Não foram todos caminhoneiros que pediram intervenção militar, verdade seja dita. Mas uma fração considerável do movimento apoiou a “iniciativa” – e de forma ostensiva. Trata-se de fato relevante, não pode ser ignorado. Não tem como “passar em branco”, afinal deu-se sob holofotes e à vista do país, de modo que acaba por influenciar pessoas e sedimentar comportamentos, circunstância que reclama uma resposta de todos aqueles que tem compromisso com a democracia.
Uma cultura é transformada, principalmente, a partir do conhecimento dos fatos que marcaram a História, a fim de que a tragédia não se repita como farsa, como bem ensinou Marx no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (1852).
Assim, no meu modesto combate ao entulho autoritário cultural, mais uma vez faço algumas considerações sobre os primeiros Atos Institucionais (AI) produzidos pelo regime militar. Pelo estudo dos AI é possível aferir o quanto uma “intervenção militar” sustenta o arbítrio e corrói a liberdade e a vida das pessoas.
O AI-5, lançado em 13DEZ1968 pelo General Costa e Silva, é o mais lembrado. Vigorou até dezembro de 1978 e se prestou a dar aspecto de legalidade para uma série de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Essa “norma jurídica” sustentou o momento mais violento e repressor da ditadura militar (ou civil-militar, como preferem alguns).
O AI-5, contudo, não foi um ato isolado, teve seus “irmãos”. Foram editados ao todo 17 atos institucionais no curto período de 1964 a 1969 (ano em que nasci), os primeiros cinco seguem rememorados abaixo, ainda que rapidamente. E um detalhe: o primeiro AI se seguiu a um “golpe parlamentar”, tal qual, mutatis mutandis, Dilma sofreu.
No dia 31MAR1964, pouco antes do alvorecer, tropas militares, sob a batuta do general Olympio Mourão Filho, marcharam de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro. Objetivo proposto e alcançado: depor o governo constitucional de João Goulart (Jango). Ou seja, golpear a democracia para destituir um governo de centro-esquerda, eleito pelas urnas.
Como a estratégia montada pelo general Assis Brasil, Chefe da Casa Civil, não conseguiu travar o golpe, o presidente Jango seguiu de Brasília para Porto Alegre. Primeiro buscou refugio numa estância de sua propriedade, depois rumou para o exílio, no Uruguai.
Para a decepção do ex-governador gaúcho, Leonel de Moura Brizola, Jango optou por não lutar – queria evitar uma guerra civil e derramamento de sangue. Vale lembrar que em 02ABR daquele ano a Marcha da Vitória, em comemoração ao golpe militar, superou a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizada antes mesmo dos militares tomarem o poder. Havia, portanto, uma base social disposta a sustentar o golpe de 64. O conflito civil, na visão de Jango, era inevitável, caso resistisse em ficar no cargo.
Aliás, os militares tinham dados sinais que não estavam para brincadeiras. No dia seguinte ao golpe, foi incendiada a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, e o líder comunista Gregório Bezerra foi covardemente amarrado pelo pescoço e arrastado pelas ruas do Recife, para servir como exemplo a quem se opusesse ao novo governo.
Ainda com Jango oficialmente no comando do país, o presidente do Senado Federal, senador Auro de Moura Andrade, em 02ABR1964, no chamado “Golpe Parlamentar”, declarou vagas a presidência e a vice-presidência da República e, ato contínuo, empossou o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Ranieri Mazzilli.
Mazzilli foi apenas uma patética figura decorativa, um “bobo da corte”. Quem mandava mesmo no país era uma junta militar.
Tanto é assim que em 09ABR1964 foi baixado o Ato Institucional nº 1, chamado de AI-1, que transferia poderes excepcionais para o Executivo, ao mesmo tempo em que subtraia a autonomia do Legislativo e do Judiciário. O AI-1, editado pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sem base constitucional, à margem do princípio da reserva legal, concedia à Junta Militar o poder de cassar mandatos parlamentares. Ou seja, qualquer parlamentar que tomasse uma posição contrária ao regime sujeitava-se ao perdimento do seu mandato pela dita junta.
Os Inquéritos Policial-militares (IPMs) tiveram suas bases estabelecidas pelo AI-1, estando a eles sujeitos aqueles que cometessem “crimes contra o Estado”. Os poderes excepcionais conferidos aos IPMs viabilizaram o início às perseguições dos adversários políticos do regime, que eram presos e torturados. Uma lava-jato da época, em outros termos?
Sinale-se que o AI-1, que suspendeu a imunidade parlamentar, autorizou o “Comando da Revolução” a cassar mandatos e deu “base jurídica” para o governo golpista, foi editado inicialmente para vigorar até final de janeiro de 1966, porém se perpetuou. Era para ser o único ato institucional, porém outros 16 lhe sucederam. Assim são regimes de exceção: apresentam-se como “soluções provisórias”, mas quando se encastelam no poder de lá não querem mais sair!
Dois dias depois da edição do AI-1, o Congresso Nacional ratificou a indicação do Comando Militar e elegeu o marechal Castelo Branco, – coordenador do golpe contra Jango – presidente da República.
Em 10ABR1964, um dia antes da “eleição” de Castelo Branco, a Junta Militar divulgou o Ato do Comando Revolucionário nº 1. O referido ato, logicamente, não foi submetido ao Congresso Nacional. Sua “base legal” era o AI-1.
Pois nesse “Ato do Comando Revolucionário” foi publicada uma lista de pelo menos 100 nomes de brasileiros suspeitos de “serem comunistas”. Seus direitos políticos foram inapelavelmente suspensos, sem espaço para o contraditório e à ampla defesa. Como foi possível a OAB apoiar, lá no início, o golpe militar?
A lista de “vermelhos” continha nomes como o do presidente deposto, João Goulart, do ex-presidente Jânio Quadros (comunista???), do secretário-geral do proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), Luís Carlos Prestes, do governadores depostos Miguel Arraes, de Pernambuco, do deputado federal e ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, do deputado federal por Roraima e do ex-governador do Amazonas Gilberto Mestrinho, do desembargador Osni Duarte Pereira, do economista Celso Furtado, do embaixador Josué de Castro, do ministro deposto da Justiça, Abelardo Jurema de Araújo, dos ex-ministros Almino Afonso, do Trabalho, e Paulo de Tarso, da Educação, do presidente deposto da Superintendência da Política Agrária (Supra) João Pinheiro Neto, do reitor deposto da Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro, do assessor de imprensa de Goulart Raul Riff, do jornalista Samuel Wainer e do presidente deposto da Petrobrás, marechal Osvino Ferreira Alves.
O rol de “comunistas” com direitos políticos suspensos ainda incluía 29 líderes sindicais, como o presidente do então extinto Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).
Pelos nomes cogitados na listagem do Ato do Comando Revolucionário nº 1, todos aqueles que não concordavam com o regime eram classificados como comunistas, ainda que liberais fossem.
No mesmo dia, 10ABR, foi publicado o Ato do Comando Revolucionário nº 2, cassando o mandato de 40 membros do Congresso Nacional, que já estavam arrolados no ato de suspensão dos direitos políticos. Assim, num único dia, esses parlamentares tiveram seus direitos políticos suspensos e seus mandados cassados. Detalhe: grande parte dos deputados cassados era do PTB de Jango. A UDN, que apoiou o golpe e sustentou o regime, não teve nenhum deputado ou senador afastado.
Alguns dias depois, mais 10 parlamentares foram cassados, totalizando uma leva inicial de 50 mandatos populares extintos.
Mas não somente civis foram alvos da Junta Militar. Ela ainda expulsou 122 oficiais de alta patente das Forças Armadas, além de sargentos, cabos, etc.
Ainda em 64, pelo menos 49 juízes foram vítimas desses expurgos. Julgava contra o regime militar? A porta era a serventia da casa…
Conforme revela o historiador Boris Fausto (2002), na sequência desses primeiros expurgos mais de 1.400 pessoas foram arbitrariamente afastadas da burocracia civil e cerca de 1.200 das Forças Armadas. A ditadura militar não deu mole nem para os próprios militares.
Com o AI-2, baixado em 27OUT1965 em represália aos resultados das eleições que ocorreram no início daquele mês (a oposição ganhou as eleições em cinco estados; parte da classe média, que havia apoiado o golpe, continuava de bolsos vazios, e paulatinamente deixou de apoiar a ditadura, votando na oposição), são reabertos os processos de cassação e partidos políticos são extintos. A ditadura perdia no voto, mas ganhava no “tapetão”.
Pelo AI-2, a eleição indireta do presidente e vice-presidente da República não seria mais secreta. Assim, o congressista que não votasse no candidato militar era identificado e virava alvo fácil.
A extinção dos partidos políticos e a criação do sistema bipartidário foi a “justa” medida encontrada para controlar os opositores do regime. Estariam enfiados todos num único saco, ao alcance das “medidas corretivas”.
O mais grave, no AI-2, foi a intervenção direta, sem máscara, no Poder Judiciário. Os civis acusados de cometer “crimes contra a segurança nacional” passaram a ser julgados pelos Tribunais Militares. O Estado brasileiro entra num típico regime de exceção, em que os direitos individuais do cidadão não são mais protegidos pelo Poder Judiciário.
O AI-1 já havia profanado o Poder Judiciário ao suspender a garantia de vitaliciedade dos magistrados e afastar juízes não alinhados. Agora, pelo AI-2, mais um duro golpe contra a independência do já fragilizado Judiciário. O desmonte do Estado Democrático de Direito estava concretizado.
Em fevereiro de 1966 sobreveio o AI-3. Esse Ato Institucional fixou a eleição indireta de governadores, que seriam escolhidos pelas respectivas Assembleias Legislativas. Afinal, quem mandou o povo eleger em 1965 governadores da oposição, afrontando a “redentora”? Os militares encastelados no poder entendiam o seguinte: se o povo não votava na situação é porque não sabia votar. Se não tinham competência para eleger governadores simpáticos à ditadura, então que não votassem mais.
Já o AI-4, baixado em 07DEZ1966 pelo governo Castelo Branco, convocou o Congresso Nacional com vistas à votação e promulgação da Constituição de 1967.
Vale lembrar que Castelo Branco, depois de providenciar a cassação de mais uma penca de deputados, fechou o Congresso Nacional. Com o AI-4, convocou o Congresso antes fechado e, literalmente, forçou a aprovação da chamada “Constituição de 1967”, que incorporava parcialmente as normas criadas unilateralmente pelo regime, consolidado a centralização do Poder no Executivo.
Depois foi a vez do AI-5, que representou o recrudescimento do regime militar, em resposta aos movimentos de 1968.
Um dos alegados motivos para a promulgação do AI-5 é pitoresco: o pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, na Câmara dos Deputados, em 03SET1968, lançando um apelo para que o povo não participasse dos desfiles militares do 7 de Setembro e para que as moças se recusassem a sair com oficiais.
O governo militar solicitou, então, a cassação do deputado Márcio Moreira Alves e, ainda, do deputado Hermano Alves, que escrevia artigos contra o regime.
O Congresso Nacional, por 75 votos, não autorizou o processo para cassação dos deputados. Em resposta, em 13DEZ1968, foi baixado o AI-5, autorizando o presidente da República, sem apreciação judicial, a decretar o recesso do Congresso Nacional, intervir nos estados e municípios, cassar mandatos parlamentares, suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão decretar o confisco de bens considerados ilícitos e suspender a garantia do habeas-corpus.
Naquele mês de DEZ 1968, com base no AI-5, 11 deputados federais foram cassados. A lista de cassações aumentou no mês de JAN1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal.
O AI-5 abriu a porta para os horrores que seguiram!
O entulho autoritário cultural quer fazer retornar aquele estado de coisas, por isso temos de removê-lo.