BILHETES

NOTAS SOBRE POLÍTICA E CIDADANIA

O Lula, certa feita, afirmou que ele era o resultado do nível de consciência dos trabalhadores brasileiros.

Flávio Bettanin, profundo conhecedor do marxismo e militante político histórico, em reunião do grupo Reflexões à Esquerda, criticou aquela fala do Lula. Reconstruo suas considerações com base em anotações que tenho comigo:

– O Lula revelou, sem se dar conta, a causa dos tropeços que desgastaram os governos do PT pré-golpe. O pensamento dominante de uma época é o pensamento da classe dominante. A condição de classe difere da consciência de classe. Os que adquirem consciência de classe, rompendo o pensamento dominante, superando o nível de consciência imposto, adquirem a condição de organicamente se posicionarem na luta de classes. Os governo do PT e o Lula pouco contribuíram para a formação da consciência de classe dos trabalhadores.

Abri divergência, em termos.

O Lula pretendeu dizer, ainda que por outra linha de entendimento, que suas virtudes e suas limitações em seus dois primeiros governos foram determinadas pelas circunstâncias sociais, econômica e políticas a que se submetia o mundo do trabalho e pelo acúmulo de praxis (atividade teórico-prática) capaz de alterar estas circunstâncias.

Para mim, Lula, em seu discurso sobre a “sintonia fina” de sua consciência individual em relação à consciência coletiva dos trabalhadores brasileiros fez sobressair dois aspectos: (1) um sentimento de pertença de Lula em relação à classe não proprietárias dos meios de produção; (2) que ele, Lula, não se coloca como uma “vanguarda” dos assalariados, mas como a expressão viva do estágio de consciência desta classe.

Quero dizer com isso que o objeto mais adequado para eventual reflexão sobre tropeços e acertos do PT ou da esquerda nacional num passado recente talvez não seja o grau de consciência de um indivíduo isolado, mas o estágio de consciência dos não proprietários dos meios de produção enquanto classe.

Esse esforço investigativo é que vai permitir a elaboração de um diagnóstico útil para definir os termos da intervenção da esquerda para a tentativa de construção de um novo “bloco histórico”, até porque Lula e a esquerda estão novamente do governo.

Falo aqui em bloco histórico naquele sentido gramsciano, da intersecção entre o conjunto das relações materiais e o conjunto das relações ideológico-culturais. Uma a vontade coletiva que se constitui a partir de determinadas relações de produção e que tem capacidade para dirigir a transição para uma outra formação social e econômica.

Voltando ao Lula. Embora sua liderança política, sua capacidade de gestão (de pessoas e de situações) e o seu imenso carisma, Lula não tem o perfil de um “agente da superestrutura”, um intelectual orgânico da classe dos não proprietários dos meios de produção, com capacidade de isoladamente tornar os não proprietários dos meios de produção conscientes de sua condição de economicamente explorados e politicamente manipulados.

Agora Lula é novamente governo e, por certo, a execução de inúmeras políticas de inclusão social podem ser favoráveis à elevação da consciência de classe. Mas como visto nas experiências anteriores, isso não é suficiente (assim como a ideia de partido conscientizador das massas também fracassou).

Além disso, a atual conjuntura ainda exige um o esforço adicional (tático) porque também se luta pelo não refluxo da democracia e contra a construção de uma hegemonia de extrema-direita. E tudo isso diante de um cenário desfavorável sob o ponto de vista da correlação de forças, isso porque a esquerda é uma fração minoritária.

Não podemos esquecer que o atual governo Lula trata-se de uma coalização entre a esquerda democrática e os liberais para salvar a democracia (liberal!) das mãos do ultraconservadorismo internacional e do bolsonarismo.

E nem entrei nas lutas identitárias, que para mim não conflitam, como muitos alegam, com a aquisição da consciência de classe.

Aliás, penso que só a consciência de classe (de viés econômico) é insuficiente (mas necessária) para a construção de uma nova formação social e econômica capaz de superar o capitalismo.

A democracia, instituição humana e método de distribuição e exercício de poder, tem enorme desafio: diante da alteração das condições econômicas (base material), legitimar o processo social, econômico e político que está surgindo.

A alteração das condições econômicas a que me refiro decorre, principalmente, das inovações tecnológicas, dentre elas, a inteligência artificial, e da reação do sistema financeiro, que reorganiza as formas de acumulação do capital. Os avanços tecnológicos desestruturam o trabalho vivo (aquele que exige o trabalho humano), reduzindo o nível de emprego e a massa salarial, afetando com isso o consumo (só a elite não garante o nível de consumo necessário para o sistema se manter).

Se a democracia não se reinventar, as consequências poderão ser amargas para a grande maioria das pessoas, com mais exclusão social e econômica, deslegitimando o método democrático e permitindo o crescimento de “soluções” autoritárias e fascistas. Aliás, não é por outro motivo se vê o ressurgimento, em escala mundial, da extrema direita, que vai aglutinando adeptos dentro da massa de excluídos.

Na busca pelo aperfeiçoamento da democracia, o imperativo é revisitar o conceito original de Poder Legislativo de Rousseau, que, segundo o pensador iluminista, trata-se do próprio povo.

Ao exame, a democracia indireta tem se mostrado insuficiente e, utilizando uma expressão marxista, ela possivelmente já não corresponda às “condições materiais”. Uma nova formação social e econômica, mais inclusiva e justa (penso naquilo que se tem chamado de economia solidária, conforme Paulo Singer, na obra Introdução à Economia Solidária, 1ª ed. São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2002), somente terá chances de se consolidar, obtendo legitimação social, na hipótese de desenvolvimento da democracia participativa.

Marx afirmou no Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859):

“Na análise dessas transformações, deve-se sempre diferenciar entre a transformação material das condições econômicas de produção – a ser constatada fielmente segundo as ciências naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, formas ideológicas, com as quais os homens tornam-se conscientes desse conflito e o extinguem”.

Ainda que sem qualquer adesão à vertente economicista do marxismo, parece-me que a sobrevivência da democracia e, sobretudo, a definição de uma nova formação social e econômica, mais justa e fraterna, somente será viável se a sociedade (na fração civil e na fração política) for capaz de organizar a democracia com participação popular direta, obviamente mesclada com a representativa/parlamentar.

Fazer a crítica à democracia representativa não é necessariamente rejeitá-la. Trata-se de reivindicar da democracia um salto qualitativo. E uma possibilidade de avanço é a democracia participativa, que reúne aspectos de democracia direta com vicissitudes da democracia parlamentar.

Um exemplo de pequena introdução de democracia participativa é o Orçamento Participativo, já experimentado com sucesso, mas que foi aos poucos abandonado. Uma incipiente forma de democracia participativa, que realizava seus movimentos dentro da realpolitik, tencionando governos e parlamento no sentido de fazer prevalecer os investimentos decididos em assembleias públicas.

A democracia representativa e a clássica divisão dos poderes de Montesquieu são figurinos que estão se revelando insuficientes para atender a todas as demandas das forças produtivas da atualidade, de modo que travam o surgimento de uma novel formação social. Evitando mal-entendidos: não se trata se jogar fora a bacia de água suja com as crianças dentro, mas de aperfeiçoar a democracia e suas instituições.

Se no início do capitalismo a democracia liberal estava em consonância com o desenvolvimento das forças produtivas de então, a estagnação de agora se converte num obstáculo. Por isso se vive aquilo que a ciência política denomina de crise da representação parlamentar, processo que corrói de dentro para fora a legitimação da democracia, na medida que parcelas da sociedade não se percebem adequadamente representadas nas instituições de Estado e não participam da formação da decisão acerca das regras da divisão das riquezas socialmente produzidas.

Como entendo que um “mundo melhor é possível”, defendo que o caminho da superação da crise de legitimidade, diante das transformações tecnológicas e econômicas, passa pela construção da democracia participativa. O outro caminho é o recrudescimento da crise, abrindo-se espaço para soluções autoritárias. Uma encruzilhada.

Por Flávio Bettanin


Os quatro jornalistas da Globo News de ontem à noite (29/04/2023) concentraram-se comentar às manifestações de economistas, psicólogos, sociólogos que alertam sobre as consequências sócio-econômicas da inteligência artificial, em especial as que preconizam colocar freios a essa nova tecnologia.

A Zero Hora, 30/04/2023 , no artigo com o título “MUSK e especialistas pedem para pausar a IA”, afirma-se:

“O pedido de pausa visa dar tempo para que sejam estabelecidos sistemas de segurança com novas autoridades reguladoras , vigilância de sistemas de IA , técnicas que ajudem a distinguir entre o real e o artificial e instituições capazes de fazer frente a ” perturbação econômica ( especialmente para a democracia) que a IA causará”.

O pânico dos jornalistas penso que decorre dos alertas dos especialistas, mas estes, principalmente os economistas , por conhecerem as teorias do cientista que discorreu sobre as leis do desenvolvimento histórico. Estes especialistas leram o que Marx escreveu no prefácio da Crítica à Economia Política :

Em determinado grau de sua evolução , as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que não é senão uma expressão jurídica disso, comas relações de propriedade em cujo seio se tinham movido até então. Estas relações transformam-se de desenvolvimento das forças produtivas em seus entraves. Abre-se então uma época de revolução social “.

Não pretendo aqui ampliar considerações sobre o pânico dos intelectuais da classe dominante, estes como é natural estão pondo entraves, com a hipocrisia que lhe é própria “pausas”, ao avanço tecnológico que implica em novas relações de produção e relações sociais. Minha preocupação é com grau de consciência e disposição da esquerda frente à essa realidade. Principalmente, no caso do Brasil, que a esquerda está, em frente ampla, no governo. Lamentável seria que o programa de governo fornecesse entraves à tecnologia na perspectiva conservadora.

Em resposta a Flávio Bettanin (por Charles Bakalarczyk):

@Flávio Bettanin, não tenho resposta para a pergunta do teu título. O que posso dizer: o capitalismo na sua atual fase (financista) é uma grande pirâmide financeira.

Com o avanço tecnológico, o trabalho morto poderá substituir quase que integralmente o trabalho vivo (claro que estas duas categorias marxianas tem ser reinterpretadas, ao meu ver, mas aqui não há espaço para essa discussão).

Tal fenômeno vai minando a possibilidade de extração de mais valia para acúmulo de capital.

Além disso, sem “assalariados” (entre aspas, porque a precarização do trabalho mascara o pagamento de salários) reduz os consumidores (só a elite econômica não mantém o nível de consumo necessário).

Nesse estado de coisas, a base da pirâmide é destruída.

O escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus ao receber, em 1957, o Nobel da Literatura, afirmou:

“- Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça”.

Camus desde cedo assumiu uma postura de “revolta”, de não aceitação do “destino”. Nasceu em 7 de novembro de 1913 em Mondovi, província argelina de Constantine. À época, a Argélia era ocupada pela França. Órfão de pai, que morreu lutando na primeira grande guerra, família pobre, não tinha perspectiva de se manter na escola secundária. Ainda assim, Camus não abandonou seus estudos. Sua irresignação lhe rendeu, como visto, um prêmio Nobel.

No ensaio filosófico “O Homem revoltado”, obra datada de 1951, plena guerra fria, Camus ensina que para o homem revoltar-se contra a sua condição de explorado e subjugado deve, num primeiro momento cognitivo, perceber-se igual aos demais. Nem inferior, nem superior.

Essa percepção de igualdade entre os oprimidos traz outra: a de solidariedade. Não se trata mais, a partir daí, de um sofrimento individual. Agora se levanta a identidade entre os oprimidos revoltados. Conclui Camus:

“(…) essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos “

Em “O Homem revoltado”, Camus faz duras críticas ao stalinismo, dizendo que enquanto no fascismo havia a exaltação do carrasco pelo próprio carrasco, no totalitarismo stalinista a exaltação do carrasco se dava, dramaticamente, pelas próprias vítimas. Camus não aceitava o fato de os movimentos revolucionários, já no controle do Estado, empregar a violência em nome da eficácia política ou como uma determinação de leis sociais e históricas inexoráveis.

Camus até entendia que o comunismo soviético, em seu “princípio mais profundo”, tinha a pretensão de “libertar todos os homens”, mas denunciava uma grave distorção na execução desse objetivo: para buscar liberar a todos, primeiro escravizava a todos, de modo que “a revolução voltou-se efetivamente contra suas origens revoltadas”.

Com essa posição, o filósofo franco-argelino abriu divergência em relação ao pensamento marxista ortodoxo de então, recusando a natureza cientificista e positivista da superação do capitalismo. Não há uma finalidade prévia na História que possa ser apreendida pela ciência social e que justifique acriticamente ações políticas.

Esse entendimento, naturalmente, permitiu que Camus fosse duramente atacado, inclusive pelo campo político e ideológico em que militava. Afinal, em tempos de guerra fria, um “homem de esquerda” tinha de se alinhar “automaticamente” ao bloco soviético e aos desígnios de uma história desenhada antes do seu próprio desenrolar.

O humanismo de Camus, no entanto, não detrata a revolta. Ao contrário, deseja a revolta, mas a revolta libertária, uma revolta em que o revoltado, para combater o mal, ainda que assumindo o atributo de inocente, não deve renunciar ao bem, porque assim fazendo acaba por reforçar a barbárie, arruinando a sua inocência.

Na formação social e econômica capitalista, inegavelmente há uma fratura constitutiva, a separação das pessoas em estamentos, num formato piramidal, cuja base é composta por deserdados, situação que tem se agravado, basta olhar os dados de concentração de renda. No espaço da política, os valores democráticos sofrem corrosão. Além disso, o meio ambiente é devastado pelo uso insustentável dos recursos naturais. As mudanças climáticas estão ai batendo à nossa porta, ameaçando a sobrevivência da humanidade.

O peso da realidade reclama uma atitude, um “revoltar-se”, retirando os demais da apatia, rompendo a solidão do individualismo para “existirmos” com uma identidade comum, solidária.

Parafraseando Camus, talvez a tarefa posta agora para aqueles que se preocupam com o futuro da humanidade, diante da crise que se aprofunda, não seja reformar o mundo, mas impedir a sua destruição.

Por Luís Henrique Prado de Santis (*)

Nos idos dos anos 90, adquiri uma fita de VHS, chamada Arroz Amargo RISO AMARO (Itália, 1949), da coletânea Os Clássicos do Cinema, vol. 23, motivo pelo sobrenome do diretor, Giuseppe de Santis, o filme se passa na Itália pós Segunda Guerra, a película é carregada de crítica social, com o trato dado as trabalhadores nos arrozais de Vercelli (nordeste da Itália), as condições insalubres daquelas trabalhadoras.

Neste enredo também tem o roubo de um “colar” supostamente valioso, que vai dar o movimento da trama e consequentemente seu desfecho. Esta lembrança me ocorre em meio a escândalos de trabalhos análogos a escravidão que pipocam na região do Rio Grande de São Pedro.

Em Uruguaiana, foram resgatados 82 trabalhadores em trabalho análogo a escravidão, sendo 11 deles adolescentes entre 14 e 17 anos, que deveriam estar ainda na escola e no máximo ser aprendiz em alguma empresa. Uruguaiana só não é pior por que o vinhedo de Bento Gonçalves registrou 207 pessoas.

Em meio a esta vergonha eis que surge um descendente de D. Pedro, Luiz Philippe de Orleans e Bragança, que se intitula príncipe, tem colhido assinaturas para extinguir o MPT e as cortes trabalhistas.

O Brasil utilizou-se do trabalho escravo desde o início da sua colonização e foi o último país a abolir o regime escravocrata. Isso só aconteceu no século XIX, após o imperador D. Pedro II não resistir mais à pressão da Inglaterra, de outros países europeus e da sociedade brasileira da época para libertar os negros.

Por si só nossa História já nos condena a uma dívida social aos descendentes dos escravizados, mas ela ainda teima em nos atirar na cara que ainda não acabou. Vergonha! Vergonha!

Vais me perguntar:

– E o Colar, com esta prosa?

Respondo:

– Ainda estão guardados em depósito que fica em uma área de segurança fortemente vigiada do Aeroporto Internacional de São Paulo.

*Luís Henrique Prado de Santis é licenciado em História e Pedagogia

Imagem de uso gratuito, sob a licença Pixabay

Marcos Rolim, em “A Atualidade dos Direito Humanos”, sinalou que Cornelius Castoriadis estava certo ao constatar o seguinte:

(…) a vitória do ocidente ao final deste milênio foi, antes, a vitória da televisão, dos jipes e das metralhadoras, do que a vitória do habeas-corpus, da soberania popular e da responsabilidade do cidadão”.

Tenho observado, com horror, pessoas nas redes sociais e, mais recentemente, na frente dos quarteis, defendendo intervenção militar, além de atacar os Direitos Humanos.

Não é de agora, claro, que se vê aloprados atuando em defesa de medidas autoritárias e violentas como solução para os problemas econômicos e sociais do país. Partidários do uso da força e da violência, apoiando ações ilegais de agentes do Estado contra os movimentos sindical e social, sempre dão ar de sua graça. Ataques contra crianças e adolescentes, mulheres, pretos, pobres, homossexuais e minorias são vetustos. No entanto, há uma intensificação na defesa ideológica destas condutas ao ponto de cristalizar uma perigosa “nova normalidade”.

O mote utilizado: “direitos humanos para humanos direitos”. Uma frase tola, já que não há como conceber que os Direitos Humanos – os direitos de todos os humanos, portanto universais – possam ser aplicados seletivamente, de forma exclusiva para os que são “direitos”, as “pessoas de bem”.

Somente uma sociedade separada por classes sociais e patriarcal concebe, sem qualquer remorso, que determinados direitos devam ser exercidos com exclusividade pelo estamento da cobertura ou pelo patriarca. Ou que aceite o sofrimento – quiçá a morte – de pessoas como política pública com vistas à higienização social!

Uma fração significativa de pessoas que se volta contra a plataforma dos Direitos Humanos o faz por conta de uma visão elitista e preconceituosa. Cada direito é privilégio seu, de sua classe, por isso não pode pertencer aos demais, essa partilha representa uma ameaça. São os “humanos direitos” reivindicando, na verdade, a exclusividade sobre os Direitos Humanos, que passam a ser seus por suposto mérito.

Mas há outros tantos que reproduzem o discurso de privilégio, de dominação e de ódio sem sequer compreender o que sejam os Direitos Humanos e o impacto deles (ou da falta deles) em suas vidas. Pior, ignoram que estão “fazendo gol contra”, ou seja, lutando contra os seus próprios direitos, os direitos de seus entes familiares, dos colegas de trabalho, dos vizinhos do bairro e da classe social a que pertencem. São contra o devido processo legal, o 13º salário, uma remuneração digna, o direito de greve, o acesso universal à saúde, os programas de inclusão social, as vacinas, a educação gratuita e de qualidade, uma renda básica, a democracia e suas instituições, etc.

A visão de Direitos Humanos para os “humanos direitos” se enquadra na crítica de Karl Marx, registrada no ensaio “A Questão Judaica”, em relação à proclamação dos Direitos do Homem, porque “apenas materializava a cisão, típica das sociedades burguesas, entre o Homem e o Cidadão”. Marx observou, na ocasião, que “os direitos do homem, direitos do membro da sociedade burguesa, são apenas os direitos do homem egoísta, do homem separado do homem e da coletividade”.

Claro que a crítica elaborada por Marx não se dirige aos Direitos Humanos como conhecemos hoje, formados pelos direitos de liberdade (civis e políticos), mas que compreendem também a sucessão de diversas “gerações” de direitos do homem, no caso, os direitos de igualdade (econômicos, sociais e culturais) e os direitos coletivos (de solidariedade e fraternidade), frutos da luta concreta dos marginalizados, que conformam uma plataforma revestida de universalidade.

No fundo, Marx já antecipou o debate de que não é legítimo a fixação de direitos somente para uma classe social. Ou é para todos humanos, universal, sem estamentos, ou não se trata de Direitos Humanos!

Tanques em frente ao Palácio Duque de Caxias, golpe de 64. Imagem de domínio público

Os aloprados que, em 8 de janeiro, invadiram e depredaram os prédios dos Poderes da República serão submetidos ao devido processo legal e, ao final, havendo provas do seus atos (e elas existem às escâncaras), serão duramente responsabilizados, não há dúvida disso. Conforme esclarecido por juristas de renomes, a exemplo de Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da PUC-SP e da FGV-SP, há claros indícios de cometimento de crimes como o de dano ao patrimônio público, organização criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e ato terrorista. Caso condenados, os golpistas-terroristas cumprirão muito tempo na prisão. E ainda serão responsabilizados civilmente pelo prejuízo causado ao patrimônio do povo brasileiro.

Mas não sejamos ingênuos. Estes são peixes pequenos. Há muito tubarão por traz desse ato golpista, cujo planejado sequer é recente.

O premiado jornalista Luis Nassif atesta, com argumentos sólidos, que o artífice principal da tentativa frustrada de golpe veste verde-oliva (sem prejuízo de outros autores). Para Nassif, é inconteste a presença da inteligência militar na guerra híbrida que produziu Bolsonaro como “mito” e viabilizou sua vitória eleitoral no pleito anterior. Segundo o jornalista, é impossível que a estratégia sofisticada colocada em curso há muitos anos tenha saído da cabeça de Carlos Bolsonaro, como defendem alguns.

Na análise de Nassif, a base ideológica empregada pelos militares golpistas foi aquela produzida pela ultra direita americana e nos livros do general Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, falecido em 2011. No entanto, o “gatilho” do ativismo militar que redundou no 8 de janeiro foi Sérgio Moro e a Lava Jato, que trouxe à cena a atuação destacada do general Villas Boas.

Nassif, na sequência de sua pesquisa, arrola diversas iniciativas preparatórias à tentativa de golpe (caso Lula fosse vitorioso), que tem a presença militar: (i) o questionamento das urnas eletrônicas pelo Exército; (ii) a montagem de acampamentos em regiões sob comando do Exército, com a participação de familiares de militares; (iii) articulação nacional com financiadores, viabilizando um modelo padrão de financiamento dos acampamentos;  (iv) pacto entre militares e organizações criminosas (atuam no garimpo), CACs e “pessoal barra pesada” de todos os cantos do país, que foram acolhidos e protegidos para acamparem em território do Exército, misturando-os com crianças e velhos, a fim de constranger qualquer reação das autoridades civis.

Obviamente que o objetivo do ato do dia 8 de janeiro, na leitura de Nassif, passava por guiar a massa ignara dos acampamentos na invasão dos Três Poderes, provocar quebra-quebra e violência, ao ponto de justificar uma operação da Garantia da Lei e da Ordem, entregando a cadeia de comando aos militares. Daí era um pequeno passo para concretizar o golpe.

Não fosse o caminho de intervenção civil adotado pelo governo Lula no 8 de janeiro, que fechou as portas para uma operação de GLO, talvez esta coluna não pudesse ser publicada!

Na ótica de Nassif, ao depois da tentativa frustrada de golpe, os militares ainda atuaram dando guarida aos invasores, tanto no Palácio como, mais adiante, nos acampamentos, impedindo a entrada da Polícia Federal – até que muitos dos terroristas fugassem.

Como bem observa o jornalista, o Alto Comando não soltou uma nota sequer condenando os terroristas. Na invasão do Capitólio, por exemplo, as Forças Armadas norte-americanas manifestaram-se em favor da democracia e contra os atos terroristas e golpistas do trumpismo.

Ao término de sua análise, Nassif conclui que a circunstância de o golpe não obter êxito demonstra que os conspiradores militares não tem plena hegemonia, havendo militares dissidentes.

Crônica publicada no Jornal A Notícia, edição de 18NOV2022

Foto: reprodução CNN

Diante da não aceitação do resultado das urnas, alguns simpatizantes de Jair Bolsonaro, em prosseguimento aos atos antidemocráticos que já ocorriam anteriormente às eleições, bloquearam rodovias e foram para a frente dos quartéis atacar as urnas eletrônicas, o TSE e o STF, além de reclamar uma intervenção militar e a ruptura do Estado de Direito.

Os “manifestantes”, curiosamente, só denunciaram (sem provas) fraude nas urnas eletrônicas em relação àquela fração do pleito em que foram derrotados pelo voto popular. Este mesmo sistema de votação é considerado legítimo quando se trata da eleição de deputados, senadores e governadores por eles apoiados.

Possivelmente a percepção equivocada destas pessoas no sentido de a militarização, na República, ser aceitável, até desejável, tem assento em eventos passados. Nosso República, proclamada em 15 de novembro de 1889, foi gestada no Clube Militar, por um grupo de militares com ideais positivistas, sonho de industrialização e porta-voz da classe média urbana, mas que, para enfrentar o Império, por necessidade da conjuntura, aliou-se com o “agro” da época, latifundiários de lavouras exportadoras (café), que não queriam nem falar em industrializar o Brasil, conforme leciona Jucemir Rocha, no livro Brasil em Três Tempos (FTB, 2000).

Por isso, para muitos, o primeiro golpe de Estado na República foi aquele que deu azo à sua própria criação. Um vício fundante de trágicas consequências – até os nossos dias!

Na sequência da República, a quase totalidade das rupturas da ordem democrática contaram com a presença militar, como por exemplo o golpe civil-militar de 1964, mediante a deposição do presidente constitucional João Goulart, que ocorreu em 1º de abril daquele ano.

Natália Viana, premiada jornalista, bolsista da Fundação Nieman, em Harvard, e membro do Conselho Assessor do Centro para a Integridade de Mídia da OEA, no livro Dano Colateral: a intervenção dos militares na segurança pública (Objetiva, 2021), estuda a participação militar brasileira em missão no Haiti (2004 a 2017) e várias operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) ocorridas na década passada, sobretudo no Rio de Janeiro, concluindo que não é bom para a saúde da democracia a presença de militares atuando em postos governamentais que deveriam ser ocupados por civis.

É equivocado pensar que Viana menospreza as Forças Armadas ou desconsidera o seu papel constitucional de proteger o território nacional contra eventual ameaça externa. Apenas percebe o óbvio: que os militares, em qualquer lugar do mundo, são profissionais treinados numa lógica hierarquizada, pautada pela disciplina e para o uso das armas e da violência, o oposto do que se exige na atuação em instituições democráticas.

Além disso, Viana esclarece que, no caso brasileiro, há problemas de “doutrina e ensinamento em nossas Forças Armadas”, até porque “os jovens militares aprendem que dar um golpe de Estado é justificável”. Essa circunstância “pedagógica”, de não se observar as regras do jogo democrático, se a conveniência assim exigir, e dar legitimidade a um regime de exceção e força, com supressão das liberdades e garantias individuais e dos direitos políticos, é mais um motivo que torna perigosa, para a democracia, a presença de militares em governos. Mais grave se a participação é produto de um golpe de Estado, ainda que disfarçado de “revolução”.

Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus. Fonte: Agência Senado

Nesta sexta-feira, 14 de outubro, no debate promovido pela Rádio Gaúcha entre os candidatos ao governo do Rio Grande do Sul, o bolsonarista e extremista Onyx Lorenzoni (PL) não só admitiu que se negou a tomar a vacina contra a Covid-19, como também colocou em dúvida a segurança dos imunizantes e deslegitimou a ANVISA.

Na verdade, Onyx reafirmou o que já havia dito na Rádio Gaúcha em 30 de junho. Para ele, a tecnologia da vacina contra a Covid-19 não é confiável e inexiste comprovação científica de que o imunizante injetável não oferece riscos à saúde humana.

Inacreditável! Em que mundo vive o extremista Onyx?

Como se vê, o movimento antivacina bolsonarista, ainda que diante dos milhares de cadáveres produzidos pela Covid-19 e pelo atraso vacinal, não esmoreceu e tem representantes que buscam titular cargos importantes na República.

A vacina talvez se caracterize como uma das mais relevantes conquistas científicas da espécie humana, prevenindo doenças e salvando vidas. Conhecimento básico! Não saber disso é uma demonstração de ignorância comovente.

No Brasil, o SUS aperfeiçoou e expandiu o Programa Nacional de Imunizações, garantindo, por exemplo, que uma criança brasileira receba, até entrar na adolescência, gratuitamente, imunização em relação a dezessete agentes de doenças importantes, inclusive contra dois vírus causadores de câncer.

Quem tem empatia com crianças não pode, de modo algum, alinhar-se com o movimento antivacina.

O Programa Nacional de Imunizações, conquista do povo brasileiro, trouxe resultados incontestáveis, alcançando reconhecimento internacional.

Ainda assim, tem seus inimigos. Onyx, declaradamente, é um deles!

Sabidamente, o movimento conservador antivacina tem estimulado ao redor do globo (ou da Terra plana?) a relutância para vacinar, conseguindo, desgraçadamente, relativo sucesso. Tanto é assim, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a recusa em vacinar como uma das dez maiores ameaças à saúde global!

Pois no Brasil, o bolsonarismo puxa a fila dos antivacina. Não há como esquecer o esforço pessoal do Presidente Bolsonaro, em plena pandemia, para desacreditar as vacinas contra a Covod-19.

As consequências da logística “eficiente” do General Pazuello, consistente em atrasar a disponibilização dos imunizantes aos brasileiros, foram gravíssimas, muitas vidas desperdiçadas! Aliás, um dia a conta será cobrada, ainda que seja pela História, na hipótese de omissão do sistema de Justiça.

Pois para a vergonha dos gaúchos, o candidato da extrema-direita, Onyx Lorenzoni (PL), segue firme com a bandeira antivacina, a despeito do resultado nefasto desse tipo de negação da ciência!

O povo sul-rio-grandense tem de rejeitar a postura antivacina, apostar na ciência, na vida e no futuro dos gaúchos.

Se Onyx, o antivacina, for eleito, as políticas públicas de saúde, aqui no Rio Grande, estarão sujeitas ao mais completo desastre!

Gravura de 1886 reproduz o massacre de Chicago; fato histórico motivou a criação do 1º de maio

Segundo a teoria social e econômica marxista, o que hoje se convencionou chamar “pobre de direita” é o lumpemproletário, o “homem trapo”, expressão cunhada por Karl Marx e Friedrich Engels.  

Para Marx e Engels, o lumpemproletariado é um subgrupo não organizado do proletariado, que vive em situação econômica muito precária e é desprovido de consciência política, funcionando facilmente como massa de manobra da classe dominante.

Claro que estes conceitos, definidos no século XVIII, merecerem ser revisitados e, sobretudo, readequados à realidade mais complexa dos dias atuais. Até porque, observado com critério, há lumpemproletariado que não votou na direita.

Confesso que a expressão “pobre de direita” é de mais fácil entendimento em ambiente não acadêmico, desde que descartada a carga pejorativa.

Possivelmente o professor Konrad, em sua manifestação, reproduzida logo acima, pretende dizer que para a ciência social descabe qualquer julgamento moral sobre o lumpemproletariado, já que é uma (sub)classe social forjada nas condições de vida, de trabalho e culturais a que foi (e é) submetida pela formação social e econômica capitalista, situação que obstaculiza a formação da consciência de classe.

E sob o ponto de vista tático, talvez o momento eleitoral seja impróprio para investir em consciência de classe. Afinal, não se conquista voto fazendo um julgamento político ou moral do eleitor abordado.

Esta crônica não se insere, possivelmente, no conceito de “boa tática eleitoral”. Mas nem tudo deve ser reduzido às eleições, não é mesmo?

O inominado e a raposa que cuida da Constituição

Hoje à tarde, 13MAI2022, o STF analisou ação ajuizada pela Rede Sustentabilidade, que busca invalidar atos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, consistentes na produção de dossiês contra antifascistas e opositores do Governo Bolsonaro.

A maioria dos ministros seguiu o voto da relatora, a ministra Cármen Lúcia, que declarou a inconstitucionalidade da medida.

Afirmou a ministra relatora em seu voto:

“As atividades de inteligência, portanto, devem respeitar o regime democrático, no qual não se admite a perseguição de opositores e aparelhamento político do Estado. Aliás, o histórico de abusos relatados quanto ao serviço de inteligência acentua a imperiosidade do efetivo controle dessa atividade”.

Ou seja, o STF reconheceu, acertadamente, que o seu ministro integrante, André Mendonça, quando Ministro da Justiça, agia contra a Constituição, aparelhando o órgão que dirigia para perseguir opositores ao seu então chefe!

O agente que violou tão gravemente a Constituição agora funciona como seu guardião maior!

Ora, temos uma raposa no galinheiro!

Refugiados ucranianos
Foto de EMMANUEL DUPARCQ / AFP – 02.03.22

Circula nas redes sociais um microtexto alertando sobre o acerto da invasão russa na Ucrânia porque Karl Marx (1818 – 1883) predisse, numa de suas obras, que a violência funciona como parteira da História.

Analiso aqui o aspecto da violência como vetor de avanço, se é uma justificativa universal para Putin “meter bala”.

Marx efetivamente afirmou em O Capital que a “(…) violência é a parteira de toda a sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova”. No entanto, sua observação não deve ser tomada como uma abstração metafísica, uma lei econômica/social imutável ou um juízo de valor. Ao contrário, tem se ser entendida como o esforço intelectual e investigativo de Marx, na época em que ele vivia (o homem é refém do seu tempo), atuando como cientista social, para compreender a realidade a partir dos acontecimentos até aquele instante observáveis.

E o que Marx verificou? Resumidamente, a partir de um dado momento histórico cai o véu de uma contradição na base material (forças produtivas x relações sociais de produção), situação que intensifica o confronto entre os homens (classes sociais), conflito expresso pela reação daqueles que querem a manutenção da formação social e econômica vigente (a classe dominante) em desfavor da nova formação social e econômica emergente. Essa reação utiliza a violência como ferramenta, que tem violência como resposta dos insurretos.

Caso Marx fosse nosso contemporâneo, não dá para cravar se ele apontaria a violência como uma necessidade ou uma contingência para ultrapassar o capitalismo. Ainda assim, é perceptível, diante das mazelas que vitimam o Brasil e o resto do mundo, que a formação social e econômica capitalista, no processo de acúmulo de capital, associada a uma estrutura cultural e de poder patriarcal, produz diariamente vários formatos de violência.

Retomando, salvo uma forçação de barra, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia não é o produto uma contradição “final” na base material capitalista, que sustenta a luta de uma classe contra outra. Os proletários russos não estão marchando contra os capitalistas ucranianos (assim como não marcharam contra a classe dominante do seu país) para tomar os seus meios de produção. Não se trata de conflito entre o capital e o trabalho, mas um conflito interno do capital.

Tanto a Rússia como a Ucrânia são exemplares da formação social e econômica capitalista e não estão prenhes de uma “nova sociedade”. Putin defende os interesses da classe capitalista russa – e esse é o móvel principal da intervenção militar russa na Ucrânia. Zelensky é um nacionalista de extrema-direita e sua proximidade com a Otan e a Comunidade Europeia é do interesse de parcelas majoritárias da classe dominante ucraniana.

Como pano de fundo da guerra russo-ucraniana há o confronto entre EUA e Rússia, uma disputa entre pretensões imperialistas dentro de uma grave crise capitalista global.

Rosa Luxemburgo (1871-1919), antimilitarista, defensora da democracia, “a melhor cabeça depois de Marx” segundo Franz Mehring, sustentou que o imperialismo seria uma consequência do avanço do processo de acumulação de capital, vez que inviável, por limitações materiais, o capitalismo continuar sua expansão em grande escala sem agregar “novas fronteiras”. Luxemburgo acreditava que, mais adiante, a crise levaria ao encerramento do capitalismo ou à barbárie. Em nossos dias, as guerras provocadas pelos EUA e, agora, pela Rússia, tem demonstrado que a barbárie é o caminho que está sendo pavimentado pela lógica imperialista. O mundo multipolar prometido nada mais será do que o acirramento das disputas imperialistas que já existem.

Encerrando, se toda violência militar fosse justificável por conta da frase de Marx, então as invasões do Iraque e do Afeganistão pelos EUA, por exemplo, não seriam criticáveis já que pariram fatos históricos. O nazismo foi violento e um acontecimento histórico, mas não no sentido referido por Marx.

Por Flávio Bettanin

(…)

Marx, no tema sobre mercadoria, abertura do Capital, examinando valor de uso e valor de troca, defronta-se com o fator alienante, por isso denominou-o de fetichismo.

Então, volta-se aos seu estudos filosóficos de 1884 quando se refere a Feuerbach e sua crítica da religião. A fuga da realidade objetiva para uma entidade separada, fruto da subjetividade.

Essa ruptura alienante ele encontra também entre valor de uso e valor de troca. O primeiro que sua gênese na quantidade de trabalho social empregado na confecção da mercadoria atendendo o fator necessidade, e o segundo, característico do capitalismo, no âmbito da circulação, facilitada pelo dinheiro, estabelecendo uma singular relação entre as pessoas intervenientes no processo.

É nesse ponto que o valor de troca da mercadoria, despega-se do valor de uso, tornando a mercadoria um ente destituído de sua objetividade.

(…) os objetos produzidos para satisfazer necessidades, tornando-se mercadorias perdem a objetividade de origem assumindo nova, na verdade a que lhe será intrínseca, a de agregar fator subjetivo aos produtos para impulsionar a troca e a circulação.

Mas, vem a indagação, que importância tem para o nosso tempo o aponte do fetichismo da mercadoria?

Na geração do sistema capitalista, esse fator intrínseco agregado pela subjetividade dos produtores e consumidores, portanto na superestrutura do sistema, desenvolvia-se lentamente, porque diminuta a quantidade de produtores, da concorrência entre as empresas, e lento o desenvolvimento das forças produtivas e da ciência.

Mas, ao tempo de Marx em plena revolução industrial todos esses fatores se dinamizaram. E foram ao ápice da curva de ascensão do sistema capitalista com as segunda e terceiras e ganham formas fantasmagóricas na curva de descenso em era da digital e da robótica.

Tudo isso foi possível, entre outros, porque a forma estrutural do sistema carregou para sua superestrutura, campo da ideação, as formas fetichistas dada à mercadoria, tendo como efeito fenômeno de subjetividade coletiva tornando-a fruto de trabalho abstrato, afastado do caráter objetivo material do trabalho vivo ou do trabalho morto da maquinaria.

Para que se sinta palpável esse processo, diga-se que o dinheiro é a encarnação do trabalho abstrato não deixando transparecer nenhum conteúdo concreto, sendo absoluto o valor de troca, deixando o valor de uso esquecido.

As circunvalações da ideação na superestrutura do sistema geram estados de necessidade na mente dos consumidores, contando para isso com um aparato tecnológico fantástico para a dominação das consciências: cultura orientada pela poderosa indústria telemática, pela televisão, rádio, imprensa, cinema, ensino dirigido etc.

Defino essa engenhosa tática, como defesa desesperada de manutenção dos privilégios da classe dominante do sistema capitalista, ante às sucessiva crises – e esta que estamos vivendo que tudo demonstra ser a crise estrutural sistêmica final.

Quero terminar, lembrando da importante assertiva de Marx, selecionada nas conclusões de seus Estudos Econômicos e Filosóficos, nos quais definiu a ontologia do ser social, e posta no Prefácio à Crítica à Economia Política (O Capital): – Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é o que determina a sua consciência.

Essa frase suscitou muitas interpretações, como esta: o ser social que opera na sociedade capitalista, cuja classe dominante maneja a poderosa indústria cultural, não terá sua consciência totalmente determinada pela forma do fetichismo ideado pela classe proprietária, não deixando espaço para o contraditório?

Identifico que, respondendo a essa dúvida, levou Theodor Adorno, em Dialética do Esclarecimento, declarar que a consciência dos contemporâneos acabou por rejeitar semelhante idealismo.

E ele, mesmo assim, com discordantes, é ainda considerado importante filósofo marxista da Escola de Frankfurt.

Mas, penso eu que a aceitação sem alternativas da afirmação de Adorno, que resultaria em alienação irreversível, nos levaria, em tempo de derrocada do capitalismo, ao caos e a barbárie, ou, com a evidência do que estamos vivendo da destruição da natureza, à extinção da humanidade.

A alternativa, que não vejo outra adotada pelas lideranças da esquerda centradas na via eleitoral de busca de espaço no aparelho de Estado, deve ser encontrada, entre outras formas, na luta de classes, que são eternas, adequada ao nosso tempo, definida pela práxis, teoria e prática, como leme condutor.

Encerro esse texto, certo que contém equívocos, esperando que os amigos recebam com críticas rigorosas, mas, por motivos óbvios, benevolentes.

O nitrogênio em nosso DNA, o cálcio em nossos dentes, o ferro em nosso sangue, o carbono em nossas tortas de maçã, foram todos fabricados no interior de estrelas em colapso. Nós somos feitos de poeira das estrelasCarl Sagan

O cosmólogo e astrofísico CARL SAGAN, falecido em 1996, divulgador científico multipremiado, autor de vários livros e de inúmeras publicações científicas, dentro de sua perspectiva cética – e aqui falo de ceticismo científico, que questiona crenças e reclama evidências -, certa feita afirmou que não queria acreditar, mas saber.

A frase de Carl Sagan foi coerente com seu acúmulo de conhecimento e compreensão do mundo, que afastava qualquer fundamentação sobrenatural ou mística em relação ao universo, exatamente porque as evidências coletadas pela Ciência e os modelos científicos desenvolvidos pelo homem trazem outras explicações de fundo material, físico.

Já adianto, para evitar mal-entendidos, não estou aqui sustentado que as pessoas não possam cultivar sua religiosidade. Ao contrário, sempre estive na linha de frente na defesa da liberdade de crença, assegurada na Constituição Federal, e pelo Estado laico, único caminho capaz de permitir as mais diversas manifestações místicas, sem que uma se imponha em relação às outras.

No entanto, o Estado e a sociedade têm de garantir o acesso das pessoas à educação e ao conhecimento científico, recusando as investidas do movimento anticientífico e das falácias das pseudociências.

Tal qual Carl Sagan, não quero acreditar, mas saber. Porém, aqueles que querem saber e, ainda assim, acreditar, está valendo, desde que o sistema de crenças não seja utilizado para desacreditar o saber científico.

Cientistas políticos e estudiosos do tema têm afirmado que um dos suportes do bolsonarismo foi o antipetismo – e continua a sê-lo. Antipetismo entendido, segundo a socióloga MARIA EDUARDA DA MOTA ROCHA, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como um sentimento de recusa não só ao PT, mas de rejeição ao sistema político, às instituições e à própria democracia, cujo fermento é a crise de representatividade. Como o PT esteve no Poder por vários anos, passou a representar o “sistema”, que deve ser substituído pelo modelo de 64, uma ditadura civil-militar, segundo a visão delirante do bolsonarismo.

Já o professor RICARDO MUSSE, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), diz que o antipetismo foi forjado historicamente e tem base num discurso recorrente da elite brasileira, empregado em todas as eleições em que Lula concorreu. De acordo com Musse, a corrupção sempre foi a principal bandeira para desarticular governos progressistas no país, por isso foi abraçada pelo antipetismo a partir do Mensalão, com reforço na Lava Jato.

Sem qualquer embargo a essa linha de argumentação, afirmei em outra ocasião (ver aqui) que o governo Bolsonaro – e, por extensão, o bolsonarismo – se sustenta no discurso do mito, que é fundado numa crença revestida em pseudociência – e não num saber que exige evidências e segue o princípio da falseabilidade. Por isso, o bolsonarismo não se nutre só do antipetismo, mas viceja num ambiente de pseudociência e até de anticiência.

Na obra Armadilhas Camufladas de Ciência, capa ao final do texto, contendo artigos organizados pelo físico MARCELO GIRARDI SCHAPPO, com doutorado em Física pela Universidade Federal de Santa Catarina, é exposta uma pesquisa publicada em 2019, encomendada pelo Instituto Questão da Ciência e realizada pelo Datafolha, demonstrando que somente 54% dos brasileiros concorda total ou parcialmente com um dos princípios basilares da teoria da evolução de Darwin, de que o homem e o chipanzé tem um ancestral comum. E entre 30 e 40% dos brasileiros concordam, pelo menos parcialmente, que a Terra foi visitada por extraterrestres no passado. Mais: 1 entre cada 10 brasileiros não acredita que a Terra gira em torno do Sol.

Noutra pesquisa realizada em 2019, antes mesmo da pandemia, pelo Pew Research Center, centro de pesquisa norte-americano, com 32 mil pessoas entrevistas, de 20 nacionalidades diferentes, o Brasil foi apontado como o país onde menos pessoas acreditam ou têm confiança na ciência (ver aqui)!

Claro que esta separação entre as pessoas e o saber científico não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. O Gallup realizou pesquisa com 140 mil pessoas em mais de 140 países e constatou que 57% da população mundial pesquisada julgou não saber avaliar seu conhecimento sobre ciência ou o enquadrou como pequeno ou nulo, conforme explicitado em Armadilhas Camufladas de Ciência.

No caso tupiniquim, a restrição de acesso dos brasileirinhos ao ensino médio de qualidade e dos assalariados e excluídos às inovações científicas, por imposição da elite econômica, que tudo quer e tudo concentra, é a grande responsável pelo descrédito de parcela significativa da população na Ciência, que fica vulnerável às manobras de pseudocientistas e de movimentos político ultraconservadores, como o bolsonarismo.

Aliás, o antipetismo, arquitetado pela classe dominante, também é uma resposta aos avanços, ainda que limitados, na área de educação e da ciência nos governos Lula e Dilma. Pobre na escola e na universidade, com conhecimento científico, é um perigo! Melhor alimentá-los com pseudociência, anticientificismo, negacionismo, senso comum, teorias conspiratórias e fake news.

O negacionista de Bolsonaro foi a solução encontrada pela elite, numa “escolha difícil”, para derrotar o professor Haddad. Falando em Ciência, aí temos uma evidência, aliás, do que centralmente postulei mais acima.

Não estou dizendo que a classe dominante rejeita a Ciência em bloco, mas que nega o seu acesso às classes populares e que aposta num mundo do trabalho que não se apropria do conhecimento científico, determinando que a sua existência seja alicerçada numa percepção fantasiosa. As inovações tecnológicas são úteis para aumentar a produção e o acúmulo de capital. Não haveria agronegócio sem pesquisa e trabalho científico. Mas quando a Ciência fala em aquecimento global, preservação ambiental, saúde do trabalhador, segurança alimentar, distribuição de renda, acesso à terra via reforma agrária, aí a porca torce o rabo.

Na introdução feita à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), Marx escreveu que a tarefa posta naquele momento histórico em que vivia era desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas, já que fora escrachada na sua forma sagrada (pelo filósofo Ludwig Feuerbach, em A Essência do Cristianismo). Todavia, retrocedemos. Hoje, a “missão” é dupla, tanto contra a alienação política (crítica da terra), quando anticientífica (crítica do céu).

Quando acadêmico do curso de Ciências Sociais e Jurídicas do IESA, no final da década de 90, recebi lições na disciplina de Direito Penal sobre a pena. Lembro como se fosse hoje as explicações sobre as mutações da pena, fenômeno que se estende ao longo do processo civilizatório e é dividido, para fins didáticos, em quatro fases, a vingança privada, a vingança divina, a vingança pública e o período humanitário.

Claro que se trata de uma classificação singela das fases históricas da pena, mas é bem apropriada para as pretensões de uma crônica.

Em síntese, na vingança divina, que se originou nas sociedades totêmicas (fé nos totens), um povo era autorizado a investir contra o outro se considerasse que uma divindade fosse ofendida ou um tabu violado. Na vingança privada era o “olho por olho” da Lei do Talião, cuja “normatividade” permitia que a pessoa agravada retaliasse o delito sofrido, prevalecendo, no caso, a força para impor a pena, que via de regra era desproporcional. Na vingança pública, o Estado, já com o monopólio da persecução penal, reafirma o seu poder mediante a aplicação de penas duras e cruéis. Nessas fases vingativas, não poucas vezes é detectável um interesse disfarçado de poder de uma classe dominante em relação aos dominados.

Na sequência, temos o chamado período humanitário, a pena altera seu propósito, que não é mais a vingança e que reconhece a universalidade dos Direitos Humanos. Nessa compreensão, mesmo a pessoa em conflito com a lei (o investigado, o processado e o condenado) titula direitos a serem observados pelo Estado e pela sociedade civil. O objetivo da pena não é a vindita, assumindo natureza retributiva, preventiva e ressocializadora. Sem contar que a sua aplicação pressupõe o contraditório, a ampla defesa e o julgador imparcial.

Ultrapassando a descrição meramente esquemática e dando uma bisbilhotada no que acontece no mundo, não há nenhuma dificuldade para se verificar que essas fases da pena não se separam nitidamente, mas se manifestam em sobreposição, com a prevalência de uma ou de outra. Há Estados/povos e/ou força políticas/econômicas que se recusam a ingressar no período humanitário das penas ou somente o assumem em seu sentido formal. Vide o Afeganistão do Talibã, para citar um exemplo “famoso” (mas poderia referir os EUA, que seguidamente se valem da “vingança pública” para resolver diferenças com antigos aliados, como no caso da ação que matou Osama Bin Laden).

Aqui no Brasil, nossa legislação penal apresenta a pena em seu período humanitário, ainda que em estágio rudimentar. Mesmo assim, a atuação dos agentes de Estado, principalmente das polícias, não se descolou da função vingativa da pena. Há também, em parcelas significativas da sociedade (como reflexo do pensamento ultraconservador da elite), uma aceitação ideológica da pena vingativa, apoiando justiçamentos.

Na execução a que se refere a matéria do g1, imagem acima, policiais militares executam foragido que não reagiu à abordagem, estava se entregando. Vide matéria completa aqui.

Não fico espantado com a “pena de morte” aplicada pelos policiais militares, tristemente ela existe como prática (ilícita!) e nem sempre a execução é flagrada em equipamento de gravação de imagens. Por isso, fico indignado, mas não surpreso.

O que me espanta – e até me assusta – é o apoio dado em redes sociais ao ato bárbaro cometido pelos agentes de Estado.

Comemoram a “limpa” e tratam os executores como heróis da Pátria! Até fundamentos religiosos são apresentados, sem qualquer constrangimento.

Muitas dessas pessoas tem formação superior, inclusive na área do Direito, mas são adeptas da pena como vingança pública, privada e divina, apostando em práticas violentas extrajudiciais como remédio contra a criminalidade! Apostam no crime para conter o crime, o que é um paradoxo legal e moral.

Para piorar, há o bolsonarismo, que veladamente apoia e reforça a ideologia da pena como vingança.

Justiçamento não se confunde com Justiça, é crime! É o básico, mas o básico é ignorado!

Estamos diante de uma crise de civilidade e do próprio Direito.

Getúlio Vargas criou a Petrobrás

Num grupo virtual de discussão política, Maria Bettanin lembrou que ontem foi o aniversário de morte do Getúlio Vargas (24AGO1954). E conclamou fosse escrito algo sobre o estadista nascido em São Borja (RS)

Como ninguém se aventurou, aceitei a missão. Mas só para fazer algumas considerações gerais, lincando o primeiro governo de Getúlio (fases do Provisório, do Constitucionalista e do Estado Novo) com os dias de hoje.

Indiscutivelmente, Getúlio teve papel importante para a consolidação do capitalismo no Brasil, trazendo desenvolvimento econômico e social.

Calma, pessoal, não estou idealizando a formação capitalista. Não capitulei!

Ocorre que a estrutura econômica brasileira, naqueles idos, tinha um pé fincado no feudalismo – e até no escravagismo.

A República Velha, que sucedeu o Império, foi dominada, principalmente, pelos interesses das oligarquias cafeeiras, de base regional. A economia brasileira dependia basicamente da exportação de produtos com baixo valor agregado (commodities agrícolas), vendidos ao exterior sem nenhum ou com baixo processamento.

Portanto, não havia nenhuma preocupação com o mercado externo, com as bocas e estômagos dos brasileiros.

As oligarquias não pensavam o desenvolvimento do Brasil (industrialização, urbanização, acesso à educação etc). Não havia uma meta de gerar empregos e renda. O empenho das elites era para o enriquecimento próprio. (Estou falando de 1930 ou de 2021?)

Toda ação governamental no campo da economia, como a emissão de papel-moeda – que acabava gerando inflação e aumento da dívida pública -, girava em torno dos interesses das oligarquias regionais.

Foi-se o Império, veio a República (um golpe militar). Mas a economia era essencialmente a mesma.

Por isso, os historiadores afirmam que antes do Estado Novo de Getúlio, não havia um projeto de nação.

As elites, por assim dizer, atrasavam o capitalismo.

Não há capitalismo sem industrialização. Tem de ter a fábrica, o assalariado e a mais valia.

Os avanços da legislação trabalhista promovidos por Getúlio, por exemplo, ocorrem dentro desse contexto de azeitamento das relações capitalistas (capital e trabalho), acoplado a um projeto nacional-desenvolvimentista. Vale lembrar que Getúlio foi formado no berço do positivismo castilhista.

Então, foi um “passo adiante”!

Falei das flores, agora vou falar dos espinhos, fazendo uma rápida ligação com o momento político atual.

Todos acompanham a escalada golpista e autoritária do Bolsonaro. Diante de uma provável derrota eleitoral, o bolsonarismo passa a fortalecer teorias conspiratórias, questionando previamente o processo eleitoral e elegendo inimigos fantasmagóricos.

Um dos inimigos imaginários é o comunismo. Funcionou em 1964, mobilizou as Forças Armadas, as elites e a classe média.

Mas não é de agora, nem de 64, que as Forças Armadas travam uma batalha imaginária contra o “fantasma do comunismo”. E não é só a extrema-direita que usa a bandeira da “ameaça vermelha” para chegar ou manter-se no poder.

Em 1922, foi criado o Partido Comunista Brasileiro. Em 1935, com o propósito de combater o fascismo, os comunistas brasileiros organizaram a Aliança Nacional Libertadora (ALN). Na Europa, quem estavam enfrentado os fascistas eram exatamente os comunistas.

Útil lembrar que no Brasil havia um núcleo fascista, representado pela Ação Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado.

Pois o Getúlio, diante da “ameaça comunista”, declarou ilegal a ANL. Como resposta, o movimento, chefiado por Prestes, deflagrou um lavante contra o governo de Getúlio, a Intentona Comunista, facilmente derrotada pelas Forças Armadas. Isso em 1935.

Olga Benário e Elisa Berger, militantes comunistas, foram entregues a Gestapo, a polícia nazista. Outros militantes de esquerda foram presos e torturados.

Em 1937, ano pré-eleitoral, os integralistas de Plínio Salgado criaram uma fake news. Forjaram o Plano Cohen, segundo o qual os comunistas planejavam tomar o poder, com apoio da Internacional Comunista e da União Soviética.

Tudo era uma grande mentira, com o objetivo que de criar instabilidade política, conforme foi revelado em 1945 pelo General Góis Monteiro!

A “ameaça comunista” foi a deixa para Getúlio. Em setembro de 1937, o governo divulgou na mídia o Plano Cohen. Em novembro daquele ano, com o apoio das Forças Armadas (que sabiam da farsa) e da classe média, Getúlio derrubou a Constituição de 1934 e impôs a ditadura do Estado Novo. Um autogolpe justificado na ameça comunista.

Aliás, Plínio “armou e se deu mal”. O fascista sabia do plano de Getúlio, esse sim verdadeiro, de frustrar as eleições de 1938. Plínio apoiou o golpe do Estado Novo, na expectativa de assumir o Ministério da Educação no novo governo e fincar as bases do integralismo na estrutura governamental.

Vã esperança, Getúlio dissolveu a Ação Integralista Brasileira (na verdade, todos os partidos políticos foram extintos). Os integralistas tentaram derrubar o Governo Vargas, Plínio foi preso e exilando em Portugal.

Mas se faça justiça: antes Getúlio do que o fascista Plínio, não é mesmo?

E há quem diga que se Getúlio não desse o autogolpe, as Forças Armadas fariam o seu próprio golpe – e contra Getúlio.

P.S.: Texto sem correção. Deixo essa tarefa para os leitores, por favor!

É com tristeza que recebo a notícia do falecimento do ex-vereador Raul Alves de Melo.

Lembro que em 1994, quando comecei a frequentar o curso de Ciências Jurídicas e Sociais da FADISA (depois, IESA), fui designado pela direção municipal do PT, a pedido do mestre Flávio Bettanin, para assessorar a bancada de vereadores do partido, então composta pelo Raul e pelo João Hélio Pês.

Com essa experiência, foi possível associar o conhecimento acadêmico com a “prática”, vez que uma das minhas tarefas era auxiliar os vereadores no processo legislativo, convertendo em anteprojetos de lei e proposições o resultado de reuniões e debates da bancada com a comunidade.

Foi marcante a sua atuação, naquele ano, na Comissão de Direitos Humanos, um trabalho de fôlego denunciando a violência estatal contra os economicamente deserdados, enfrentamento que recebeu reconhecimento da comissão similar da Assembleia Legislativa!

Por isso, trabalhar com o Raul foi uma oportunidade bem-sucedida, uma ocasião de aperfeiçoamento técnico-jurídico e político.

No curso da convivência política, Raul e eu divergimos em muitos pontos e em diversas oportunidades (em outras tantas ocasiões, concordamos).

No entanto, as diferentes concepções ideológicas que defendíamos não causaram nenhuma ruptura na nossa relação pessoal, que sempre foi respeitosa.

Pêsames aos familiares e amigos.

Em crônica veiculada no site ultraconservador “Contra fatos!”, é dito que integrantes de um comitê, denominado Grupo Científico de Influenza Pandêmica sobre Comportamento, teria encorajado o governo que assessora a usar o medo como mecanismo para controlar o comportamento das pessoas durante a pandemia da Covid-19. Arrependidos pelo conselho, os integrantes do comitê publicaram um livro onde admitem que foram antiéticos e totalitários. Ver clicando aqui!

A matéria – se é que dá para chamar de matéria – não elucida muito sobre o livro e sequer refere em que pais o referido comitê atua – e, enfim, qual governo assessora. Também não são esclarecidas plenamente quais foram as tais práticas totalitárias e contrárias ética que empregaram e que levaram a uma política de “ameaças pessoais” por parte do governo assessorado. Mais parece um fake news!

Caso essas práticas supostamente denunciadas consistiram em advertir a população sobre as consequências da Covid-19, tornando público o número de mortes e hospitalizações, a falta de leitos, UTIs, oxigênio, medicamentos para intubação, etc, isso não é totalitarismo, mas obrigação de um governo minimamente democrático que se preocupada com as condições sanitárias da população. O que não é caso do governo Bolsonaro!

Ora, as medidas em menção não se tratam de “ameaça pessoal”, termo utilizado na matéria, mas de transparência e de informação imprescindível para enfrentar uma pandemia. Quem efetivamente ameaça a vida das pessoas é o coronavírus, são as práticas negligentes de contenção da propagação da Covid-19 e a falta de uma política pública nacional de combate a pandemia desde o início.

Olha, sinto-me ameaçado pessoalmente – e tenho um sentimento de ameaça à saúde e à vida de minha esposa e filho, de parentes, amigos, colegas de trabalho e sociedade em geral – pelo quase meio milhão mortes decorrentes da Covid-19 aqui no Brasil e pelo atraso na imunização.

Fui ameaçado pessoalmente – eu, meus familiares, colegas de trabalho, amigos, vizinhos, etc – quando o presidente Bolsonaro, com base na sua ignorância sanitária, rejeitou vacinas que lhe foram oferecidas e apostou na cloroquina, cuja eficácia não tem comprovação científica. Aliás, a própria indústria que produz o medicamento diz que não se deve usar cloroquina para prevenir ou combater a Covid-19!

O pessoal que assessora o Bolsonaro, o tal Ministério da Saúde paralelo, até propôs mudar a bula da cloroquina, incluindo recomendação de uso para a Covid-19. Isso sim dá medo!

O ex-ministro da Saúde, o General Pazuello, disse hoje à CPI da Covid-19 que a cloroquina é antiviral! Tamanha ignorância é que me coloca em pânico!

Veiculei na minha linha do tempo no Facebook uma matéria do El País que noticia decisão judicial, exarada em primeiro grau de jurisdição, autorizando o Sindicato dos Servidores da Assembleia Legislativa do Estado de MG, o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de SP e a Associação Brasiliense das Agências de Turismo Receptivo a importarem vacinas para a imunização de seus associados e respectivos familiares sem a necessidade de realizar doação de 50% ao SUS, exigência do art. 2º da Lei federal nº 14.125/21.

Conforme conta na decisão, foi reconhecida a inconstitucionalidade parcial do art. 2, da Lei federal nº 14.125/21, afastando a expressão “desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde” e total do §1º, que prevê que “após o término da imunização dos grupos prioritários, as pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita”.

Se a lei já era ruim, a decisão em questão, salvo melhor entendimento, não melhora o cenário em nada.

Com o argumento de que é necessário permitir a participação da iniciativa privada no combate à pandemia, na verdade a decisão deu sinal verde para furar fila da vacinação contra a Covid-19!

O amigo José Lauenstein contra-argumentou, no Face, que quem “(…) paga fica com o produto…este é o correto (…)”.

Numa economia de mercado, sem a presença de um Estado de Bem-estar Social, o raciocínio não merece qualquer reparo. Nem a lei, tampouco a decisão judicial.

Mas não pode ser assim. Ou pelo menos não deveria ser assim. Esse entendimento de laissez faire, laissez aller, laissez passer não contribui para o enfretamento da pandemia. Ignora as condições reais e os valores construídos com o processo civilizatório, falo aqui dos direitos humanos de 2ª e 3ª geração, inscritos na Constituição federal de 88.

A realidade não conhecida – a condição objetiva inafastável –  a que me refiro é singela: os imunizantes são escassos.

Prevalecendo, por hipótese, a regra de ouro do capitalismo de que se a demanda é maior do que a oferta, os preços da mercadoria tem de aumentar, aí iremos rumar para a barbárie!

Por isso, a vacina contra a Covid-19 não pode ser reduzida a um produto de comércio, uma mercadoria.

Em saúde pública, não há justa causa para tirar dos hipossuficientes a título de disponibilizar para quem tem condições financeiras e meios de acesso superiores!

Nesse contexto, mais do que nunca a visão individualista e utilitarista tem de ser substituída pela solidariedade e pelo manejo racional dos recursos disponíveis.

As vacinas, já que são quantitativamente insuficientes, devem ser direcionadas aos grupos segundo a ordem de vacinação do plano nacional de combate à Convid-19 – e não para quem tem condições de pagá-las ou dispõe de meios de acesso ao imunizante que não estão assegurados de forma universal aos demais (falo da importação).

Por isso, a norma aprovada pelo Congresso Nacional, ainda que prevendo doação ao SUS e compras somente após a vacinação dos grupos prioritários, e a decisão judicial em liça, boicotam, cada qual ao seu modo, o plano de vacinação, são nocivas ao combate da pandemia e tendem a minar a coesão do tecido social, já que permitem em larga medida uma competição pelo imunizante.

Nossa CF recepcionou os direitos fundamentais de 2ª geração, que são os direitos sociais, econômicos e culturais, cuja titularidade é coletiva e que exigem atuação do Estado. Do mesmo modo, os direitos fundamentais de 3ª geração, ligados aos valores da fraternidade e da solidariedade – direitos transindividuais destinados à proteção do gênero humano – também foram albergados pelo texto constitucional. Por que contorná-los?

As concepções que embasam norma e ato judicial que aqui critico tem esteio nos valores do individualismo e da competição. O que precisamos agora é o sentido coletivo, fortalecendo laços de solidariedade e de cooperação. E isso está lá na Constituição, não se trata de invenção minha!

Ou será que ainda não foram compreendidas as razões de estarmos num buraco sem fundo?

Por Fagner Garcia Vicente


Esta foto foi compartilhada (no Facebook) por Amadeu de Almeida Weinmann e retrata um desfile celebrando o 20 de setembro em Ijuí, no ano de 1940. A imagem é particularmente interessante por três motivos: (1) é anterior à fundação do 35 CTG, marco inicial do movimento tradicionalista gaúcho; (2) nela predominam lenços brancos e (3) os cavaleiros portam bandeiras do Brasil ao invés das do RGS.

Esses três elementos vão contra boa parte do senso comum a respeito do tradicionalismo – seja dos que o defendem, seja dos que o criticam. Por isso, para quem se interessa pelo tema, vale a pena resgatar, mesmo que de forma grosseira, um pouco da história.


A celebração do 20 de setembro não começou, como se acredita, em 1947, quando um grupo de estudantes do colégio Julinho, em PoA, liderados por Paixão Côrtes, fez sua primeira vigília da chama da pátria – tornando-a chama crioula. Já existia no final do século XIX, entre positivistas republicanos, que buscavam na Revolução Farroupilha um “mito fundador” para seu próprio movimento revolucionário. “Clube 20 de setembro” era o nome da organização que sediava os estudos de Júlio de Castilhos e Assis Brasil na faculdade de Direito de São Paulo. O Major Cezimbra Jacques, intelectual, folclorista santa-mariense, foi um dos precursores do que se pode chamar de “tradicionalismo” – a busca de uma identidade gaúcha calcada na reinterpretação de determinados eventos históricos – além de fundador do Grêmio Gaúcho, em 1889.

Ou seja, inicialmente, o nosso identitarismo esteve banhado no positivismo chimango, oposto ao ideal das oligarquias agrárias maragatas (daí o lenço branco predominante, mesmo em 1940, quando essa divisão ideológica tinha perdido grande parte do seu sentido, considerando a “unificação” operada por Vargas). Manuelito de Ornellas, um dos intelectuais que mais influenciou o tradicionalismo gaúcho na sua alvorada (fez, inclusive, o discurso de abertura do I Congresso do MTG, em 1954), era redator-chefe do jornal oficial do Partido Republicano Riograndense (PRR) e, em sua obra sociológica, defendia a concepção platina do gaucho (este tipo popular, mestiço, sem terra nem paradeiro, que abundava nos pampas), oposta à concepção elitista do gaúcho estancieiro, “patrão”.

Mesmo Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, principais representantes da geração fundadora do MTG, seguiam essa linha. Em diversas entrevistas, Paixão relata que a preocupação a movê-los, ao menos inicialmente, era a invasão da cultura estadunidense, que se espalhava pelo mundo no pós-guerra e ameaçava de esquecimento manifestações culturais genuínas dos povos. Durante anos, a dupla se dedicou a documentar essas expressões diversas, registrando e entendendo exatamente sua pluralidade. Lessa, talvez o maior intelectual do tradicionalismo nascente, deixava clara, na tese apresentada no I Congresso, sua motivação política não-elitista, fortemente influenciada pela leitura de Cyro Martins, autor da “trilogia do gaúcho a pé”, e da escola sociológica de Chicago, que via na desintegração dos laços sociais as origens das mazelas urbanas.

Não que a tese de Barbosa Lessa fosse um libelo revolucionário. Como grande parte do Nativismo, até hoje, identificava as consequências sociais desagregadoras do avanço do capital, mas não chegava a denunciar as causas. Nesse limbo, se prestava a uma interpretação conservadora, que via a solução na manutenção de um modelo social arcaico. Porém, não respaldava, em absoluto, o resgate do ideário das oligarquias rurais, que viria a caracterizar o MTG nas décadas seguintes.

A questão é que houve o regresso do lenço colorado.

Os movimentos culturais interagem dialeticamente com seu contexto socioeconômico, sendo engendrados por este e influenciando seus rumos. De 1954, ano do primeiro congresso dos tradicionalistas, a 1966, quando o MTG se tornou uma organização oficial, sua linha norteadora (e, quem sabe, o próprio pensamento de suas lideranças) passou a estar sintonizada com a ideologia política que tomava o governo do país. O processo de institucionalização é parte dessa guinada reacionária – são leis da Ditadura que tornam o folclore e a semana farroupilha oficiais. No apagão cultural gerado pela repressão, os CTGs se tornaram uma das poucas vozes no meio – repetindo, é claro, o discurso dominante. Uma entidade pública chega a ser criada (o IGTF) para difundir, por meio do folclorismo gaúcho, o discurso governamental.

É nesse processo que toda a pluralidade cultuada no início é convertida na construção dogmática de um modelo mítico e a-histórico de gaúcho e sociedade gaúcha – imitação infiel da estância dos invasores portugueses. Esse mesmo processo resgata o ideário vencido em 1893, vendendo-o tanto como ideal farroupilha, quanto como matriz do identitarismo gaúcho, predominante, ainda hoje, na maioria das manifestações tradicionalistas. Para os militares americanófilos da década de 60, o tradicionalismo não reagia à imposição cultural estadunidense, mas ao suposto centralismo do Estado Novo varguista. O olhar crítico para a desintegração da estrutura social vira a exaltação ufanista de um passado idealizado. A imagem mítica do gaucho livre nos campos, é substituída pela rigorosa hierarquia estancieira, no topo da qual está o Patrão. A pilcha, tão eivada de regras, assemelha-se à farda. Sob a desculpa da “fidedignidade”, as representações artísticas são maneadas num formalismo tipicamente militar.

Contudo – e, para mim, isso é o essencial –, o uso que as oligarquias, durante e depois da ditadura, fizeram da “cultura gaúcha”, manipulada por uma organização que se arvorou em sua proprietária, não torna a cultura popular gaúcha “artificial”, uma “invenção do MTG”, ou mesmo uma mera mistificação com fins reacionários. Ir nessa linha, como grande parte da esquerda guasca tem ido, só revela o distanciamento da realidade do povo, o desconhecimento da importância que o imaginário sintetizado na busca de uma “identidade” tem para os povos – inclusive para sua autonomia.

Nossa cultura é rica e plural, como sabiam Paixão e Lessa na década de 40 – embora possam ter esquecido disso depois.

Por José Orlando Schäfer

O humanismo é um pensamento filosófico que tem o ser humano no seu centro, que valoriza o ser humano acima de tudo, pois o entende como um ser portador da Dignidade. As ideias de Democracia, de Estado de Direito e de Dignidade humana são ínsitas ao pensamento humanista.

Mas, vou dizendo de saída: eu não tenho nenhum tipo de ilusão quanto ao ser humano! E não falo isso com qualquer sentimento de decepção. Não mesmo! Quero dizer, apenas, que aceito o ser humano tal qual ele é. Até me esforço muito para vê-lo assim: um ser que pela sua própria condição, vivencia constantemente o conflito entre opostos, na linha do que pensava Heráclito. E isso ocorre, seja no plano individual, seja no plano coletivo. Dentro do Homem, pulsam muitas forças! Forças positivas, que afirmam a vida e forças negativas, que contra ela conspiram. Isso qualquer um pode sentir e enxergar. Por isso, o Homem, pra mim, é um ser individual e social, de corpo e de alma, de razão e de emoção, de alegria e de tristeza, de determinações e indeterminações, capaz de realizar o bem e o mal. O filósofo Espinosa me ajudou muito a compreender o Homem: para ele o homem é constituído por emoções que combatem entre si, fato esse que não pode ser considerado um vício, mas sim uma condição do próprio ser humano com a qual devemos dialogar. Legal, não acham?

Ora, essas forças, que atingem o Homem, são reais, não nos iludamos! No coração do homem, habitam muitas forças. Nesse diapasão, a coisa mais sensata a ser feita é administrá-las. O conflito que caracteriza o ser humano deve ser, constantemente, administrado. Se não for administrado, ou se for mal administrado, o caminho para o caos e para a barbárie se abre: pode levar a retrocessos, ao retorno a formas arcaicas, retrógradas, que podem atentar contra a vida.

Não podemos nos iludir, pois enxergamos isso no plano individual e no plano coletivo. No plano coletivo, vimos, num passado não tão longínquo, as formas arcaicas ascenderem através dos regimes colonialistas de genocídios contra as populações nativas, da escravidão, do fascismo, do nazismo, do stalinismo e de muitas outras formas de organização política que resultaram em violação ao ser humano. Quanta barbárie já vimos! O ser humano é capaz de muitas coisas, não olvidemos!

O que precisamos saber é que essas forças são reais. Elas existem em potencial em todos os tempos e lugares.

Infelizmente, no Brasil estamos assistindo hoje a ascensão de um movimento que defende, claramente, e sem qualquer tipo de pudor ou rodeio, um sistema arcaico, discriminatório, baseado no ódio, na exclusão e no desprezo à vida. Isso é claro, e não pode ser ignorado. Não pode ser desprezado! Desprezá-lo é, antes de tudo, um ato de irresponsabilidade!

Ora, um fato social dessa envergadura, desse tamanho, exige, além de muita atenção, uma postura nova de todos aqueles que têm algum compromisso com o humanismo. No caso, penso que uma postura nova exige a superação de velhas concepções sobre a política e a sociedade e que permita a construção de novas possibilidades e alianças, e que implique no abandono de interesses particulares (de pessoas e entidades) para possibilitar a construção de um grande projeto programático de afirmação dos valores humanistas no Brasil.

Aliás, diante desse fenômeno, que não é isolado, mas que se integra ao atual estágio evolutivo do capitalismo fundado na revolução tecnológica, não é mais possível a defesa de interesses particulares ou segmentários. Precisamos partir para a defesa de interesses universais, que digam respeito a defesa da vida. No caso, defender a vida significa defender a Democracia no seu sentido moderno, defender a pluralidade, defender o meio ambiente, defender uma revolução tecnológica sob controle social, defender a dignidade humana de forma radical e em todas as suas dimensões, defender o valor trabalho, significa, enfim, defender a Constituição Federal que retrata o melhor projeto humanitário que a sociedade brasileira foi capaz de construir até hoje.

Então, este não é o momento de maniqueísmos, de construção de projetos pessoais e de projetos particulares.

Pelo contrário, este é o momento do desprendimento e da união de todos humanistas em torno de um projeto que, não apenas se oponha a ascensão do fascismo no Brasil, mas que, sim, fundamentalmente, aponte para a construção, aqui, de uma sociedade justa, fraterna e solidária e que tenha o humanismo e a Constituição Federal como o seu centro.

Este é o momento em que devem aparecer as grandes lideranças, lideranças que sejam capazes de abrir mão de interesses pessoais para possibilitar a construção de um grande acordo nacional que afirme a ideia de Democracia e afaste o fantasma do retrocesso.

Acredito que o prioritário, no atual momento, é a construção de um programa que represente um consenso entre as diferentes forças sociais e que têm no humanismo o seu centro! Um programa que afirme a dignidade humana, a Democracia e a Constituição Federal.

Neste contexto, me parece que é secundário o nome de quem vai liderar a execução desse programa humanista! Não é hora para a afirmação de projetos pessoais. O que precisamos, agora, é um grande programa social que possa resultar, não apenas na eleição de um presidente da república, como, também, na eleição de Deputados e Senadores e na participação efetiva da sociedade. Qualquer coisa fora disso é pura aventura.

Precisamos, agora, de um grande programa nacional, que tenha a Constituição Federal como o seu centro e que afirme aqui a ideia de humanismo.

O título é extenso para uma crônica política, dirão. Mais parece a exposição de uma tese. Acontece que o tema abordado faz essa exigência. A conferir abaixo.

Segundo Michel Foucault, a biopolítica (política sobre a vida, momento em que o biológico passa a refletir no político – acrescento: e quando não?) superou os modelos tradicionais de controle utilizados na antiguidade e no medievo, baseados na formulação de ameaças de morte e castigos endereçados ao indivíduo (poder puramente disciplinar, que dava mais ênfase à punição do que à promoção). Via biopolítica, pelo emprego do(s) biopoder(es), que tem capilaridade nas instituições (não é centrado num soberano), grandes populações passaram a ser reguladas.

O biopoder, na perspectiva do filósofo francês, é estruturado por dispositivos e tecnologias que administram e controlam as populações por meio de técnicas, conhecimento e instituições. Há uma simbiose entre o poder disciplinar e a biopolítica, que acaba por fomentar uma dinâmica de reforço mútuo.

Foucault ensina que pela biopolítica é possível, no Estado moderno, que os governantes embasem e fortaleçam suas decisões, influenciando as pessoas, não somente pela imposição da disciplina, mas pelo exercício do biopoder, o que é feito, por exemplo, pela execução de políticas públicas (baseadas em conhecimento científico) que defendem a vida e, ainda, miram no seu desenvolvimento e maximização.

O sistema de direitos e deveres, por exemplo, é implementado pelos poderes de Estado e aceito pela população porque os governantes, parlamentares e magistrados dominam técnicas e instrumentos (biopoderes) que justificam as decisões tomadas. Ocorre que a sociedade vê nestas ações a proteção às suas vidas. Mas nisso há um cálculo!

Para Foucault, a formação social e econômica capitalista exige para o seu funcionamento a inserção controlada (pela disciplina) dos corpos no aparelho de produção, mas também reclama um necessário ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos (pelo biopoder). Os corpos que produzem precisam ser dóceis, controlados, mas as forças e aptidões dos trabalhadores devem ser ampliadas ao máximo.

Assim, no capitalismo, conforme a ótica de Foucault, o biopoder é aplicado para ajustar a acumulação dos homens ao do capital e a articular o crescimento (minimante saudável) dos grupos humanos à expansão das forças produtivas.

Na formação social e econômica capitalista, na linha de Foucault, a vida humana passa a ser aproveitada pelo Estado e pelas instituições como elemento de poder. O propósito é maximizar a vida humana para que ela seja produtiva, porque somente assim vai ser útil ao acúmulo capitalista. Não se trata de uma opção ética ou empática (embora o discurso de justificação expresse esses elementos), mas um cálculo para produzir e acumular riqueza.

De certo modo, isso explica porque o capitalismo europeu, diante da pandemia da Covid-19, não abandou a ciência e correu produzir imunizantes. Trata-se de uma biopolítica necessária à manutenção da produtividade. Sem os corpos saudáveis dos trabalhadores e dos consumidores, não há trabalho humano, as mercadorias não são produzidas, não circulam e não são consumidas. Embora parte da produção seja automatizada, a força de trabalho ainda é necessária para a produção, elemento sem o qual a economia capitalista não se movimenta.

Mas se a formação social e econômica capitalista depende da saúde de trabalhadores e consumidores (e também dos capitalistas!), como explicar que Bolsonaro (e Trump, até o encerramento do seu mandato, por exemplo) desconsidera o conhecimento cientifico para combater a pandemia, opção que provocou e provoca a morte de milhares de brasileiros?

A resposta pode ser encontrada na obra “Necropolítica” (2011), do professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, o filósofo Achille Mbembe.

Para Mbembe, a necropolítica, espécie de biopolítica, é o emprego do biopoder pelo Estado, utilizando técnicas para a eleição de quem pode viver e de quem deve morrer, que são aceitas por frações consideráveis da sociedade, completamente controladas.

Nessa situação, a morte passa a ser aceitável, “vida que segue” (para os que não morrem!). Mas na necropolítica, diz Mbembe, nem toda morte é aceitável, somente são matáveis quem já se encontra em risco de morrer, no caso, uma determina “raça” que, diante das mazelas econômicas e sociais, encontra-se em situação de risco permanente.

Leciona Mbembe que o Estado, a quem compete estabelecer o limite entre os direitos, a violência e a morte, com a necropolítica adota um discurso e uma ação (ou omissão) para criar zonas de morte, citando como exemplo mais recentes Kosovo e Palestina.

No governo Bolsonaro, indiscutivelmente a necropolítica é uma apavorante realidade, as “zonas de morte” pululam, e tem entre os seus fundamentos não somente o racismo e a eugenia, mas também o darwinismo social vulgar (pobre xará, incompreendido e mal usado), vetores que embalam o ultraliberismo e o conservadorismo da direita brasileira. Para eles, os brasileiros de melhor “raça”, com a genética dos “bem nascidos” e mais aptos (corpo atlético ou homens de bem com méritos) viverão e os demais, descartáveis, perecerão. O discurso de combate à corrupção, de retenção do marxismo cultural, de fortalecimento do patriotismo e de apoio aos valores da família são as expressões finais das técnicas de biopoder empregadas pelo bolsonarismo, que disciplinam e freiam a reação popular, inclusive daqueles que sofrem diretamente os efeitos da necropolítica.

Entendo que a necropolítica a que se refere o professor Mbembe não atrapalha o desenvolvimento do capitalismo tupiniquim, desde que ministrada em pequenas gotas. No entanto, com a pandemia totalmente fora de controle nestes últimos dias, parcelas consideráveis da classe dominante passaram a temer a necropolítica intensiva do bolsonarismo, preferindo uma biopolítica diversa, capaz de garantir a saúde básica dos corpos de quem tem de produzir (mas sem alterar a dinâmica atual da mais valia).

Nesse contexto, encontro uma das razões da devolução dos direitos políticos ao Lula (evidente que existem outros fatores, de ordem processual e jurídica – a incompetência do Juízo -, além de contradições internas dentro do Poder Judiciário, entre adeptos da lava jato e não adeptos). Trata-se de uma biopolítica de fração do Estado, no interesse (e a mando indireto) dos capitalistas, com o propósito de controlar a necropolítica bolsonarista (de outra fração do Estado), vez que no atual momento (de corpos que morrem ou que adoecem) mais prejudica do que ajuda no processo de acumulação necessária ao funcionamento do capitalismo, além do que, a longo prazo, a função disciplinar pode ser rompida e a população entrar em descontrole, rebelando-se.

Notem que o resultado superou expectativas. Lula voltando como “jogador” acuou Bolsonaro! Bolsa e dólar reagiram bem. E agora tem a pressão do “centrão” para alterar a conduta governamental diante da pandemia, inclusive com a defesa da demissão do atual ministro da Saúde, a ser substituído por pessoa ligada à área e simpática à ciência.

Logicamente que, mais adiante, a classe dominante vai investir contra o Lula, utilizando dos instrumentos disponíveis, porque não é do seu interesse que o petista – e as forças políticas e populares que com ele atualmente se relacionam -, chegue à presidência da República e passe a ditar/disputar biopolíticas que confrontem a alta burguesia.

Flávio Bettanin

Amigo Charles, agradeço a deferência de me colocar essa interessante matéria e me convidar para debatermos.

Tendo recebido a primeira dose da vacina, recobro o ânimo para expor algumas ideias, sabendo sempre que resultam de uma pulsão que me leva a escrever, mesmo ciente da superficialidade dos conteúdos pelos limites de minha sabedoria.

Duas questões logo se apresentam, existindo muito mais se fizermos leitura de toda Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: qual o conceito de filosofia adotado pelo autor.  E, outro, o que Marx quis dizer afirmando: – A filosofia não pode se realizar sem a extinção do proletariado, nem o proletariado pode ser abolido sem a realização da filosofia.

Entendo que, para dar resposta a estas questões, impõe-se que se estabeleça a cronologia das obras de Marx para acompanhar a evolução de seu pensar. Buscar o estágio dessa evolução, pois nele há de se dar respostas. De outra forma estaríamos dando nossa opinião de hoje sobre classes sociais, proletariado, história etc. e não o que ele pensava sobre essas categorias no momento que escrevia. Escrita em 1843, se atentarmos pelo que o próprio Marx diz sobre a evolução de seu pensamento, estava num momento de confissão de carências porque lhe faltavam bases para o que buscava.

Depois de fazer a crítica sobre religião, escreve nessa Introdução: “Assim, superada a crença no que está além da verdade, a missão da história consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiro objetivo, uma vez que se desmascarou a forma da santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está a serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação em suas formas não santificadas”.

Ele diz sobre o caminho de suas investigações filosóficas e históricas no Prefácio da Crítica à Economia Política: “O meu estudo universitário foi o da jurisprudência, o qual no entanto só prossegui como disciplina subordinada a par de filosofia e história. No ano de 1842-43, como redator da Rheinische Zeitung [N174], vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais”.

Entendo possível já afirmar, quase repetindo os seus dizeres, que, quando escreve para Marx a filosofia é exercício de ideias postas na missão de revelar a verdade que nos circunda, removendo a autoalienação, orientando o curso da história. Sendo a verdade revelada e concretizada, ela desapareceria por não ter mais objeto. A filosofia é eliminada pelo próprio fato de se realizar.

Na leitura da Introdução me faz deduzir que, para Marx, desse exercício de ideias resulta uma teoria: “A teoria só se realiza numa nação na medida que é a realização de suas necessidades… Não basta que o pensamento estimule sua realização; é necessário que esta mesma realidade estimule o pensamento”.

Faz excursões sobre o desenvolvimento dos países capitalistas, comparando-os com o da Alemanha e vai percebendo no exercício filosófico conexo a importância dos “interesses materiais”, a realidade da época.

Naqueles países, Inglaterra e França, descobre as classes em conflito e vê no proletariado a classe que tem a missão de superar esse conflito transformando seus interesses particulares em universais.

Este é, a meu ver, o Marx de 1843. Inteligível, pois o que Marx de 1843 quis dizer, a filosofia e proletariado, a teoria e a prática, realizando a síntese, conquistando o objetivo de revelar a verdade real, colocariam a sociedade no reino da liberdade, fenecendo ambos. Estágio de seu pensamento evidentemente insuficiente, mas a leitura da parte final da Introdução permite que se diga em que direção seus olhos, mente e coração de dirigiam: “Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo gaulês anunciará o dia da ressureição da Alemanha”.

O canto do galo gaulês cantou nas barricadas de Paris em fevereiro de 1848 quando burgueses, proletários, camponeses, estudantes, intelectuais uniram-se para derrubar a monarquia instituindo a República, mas que em junho daquele mesmo ano, banidos os proletários, foram afogados num mar de sangue, seguindo os acontecimentos até 1851 para dar na farsa de Luis Bonaparte, o Napoleão III.

É importante constatar que Marx, nesse interregno, entre a Introdução em comento e os acontecimentos de 1848 a 1851, avançou de maneira importante nos seus estudos e formulações teóricas, registradas em Manuscritos Econômicos e Filosóficos. É o Marx em outro patamar teórico que escreve sobre o cantar do galo gaulês, tragédia e farsa, em O 18 de BRUMÁRIO DE LUÍS BONAPARTE.

Obra da artista americana Harmonia Rosales
“(…) Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: Procuro Deus! Procuro Deus! – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma enorme gargalhada… Para onde foi Deus?…já lhes direi! Nós o matamos – você e eu. Somos todos assassinos! Mas como fizemos isso? … Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus?… Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”
– Nietzsche, Gaia Ciência, aforismo 125

Na transcrição acima, que serviu de inspiração para o título desta crônica, Nietzsche conta a estória de um insensato que sai em praça pública procurando por Deus para, diante da indiferença dos questionados, declará-lo morto.

Como se sabe, Nietzsche estava falando do fim de uma época onde tudo era explicado a partir da revelação divina. Era o estertor do imaginário medieval e o crepúsculo do pensamento moderno, em que o Deus judaico-cristão cedia espaço para a ciência.

Participo de um grupo em rede social formado por ateístas e agnósticos, atendendo a convite de um de seus membros.

Fui apartado por um terceiro, que acompanha aquele grupo, mas não é ateu. Indagou sobre como “perdi a alma”, como ocorreu essa “reconversão”, uma espécie de epifania reversa, mediante a qual passei a “crer” na não existência de um criador de tudo e de todos.

Aqui respondo, mas não como um desagravo ou justificativa especificamente endereçada. Minha manifestação, em sentido diverso, é pelo apego ao diálogo com todos aqueles que queiram tratar do tema, ateístas, agnósticos ou teístas.

Tenho a dizer que o meu ateísmo não é um “ato de fé”, uma crença ou uma escolha, muito menos um movimento contra à fé religiosa. Não tenho a pretensão de matar o Deus de ninguém! Na verdade, trata-se de uma compreensão de mundo, feita a partir de uma perspectiva filosófica materialista, e, de certo modo, lastreada no acúmulo de conhecimento produzido pelo avanço da ciência.

Aqui no Bilhetes vou abordar o tema no campo filosófico, falando do materialismo. De forma breve e, por isso, superficial, como exige uma crônica.

Início dizendo que não há como tratar do materialismo sem dizer da sua contraface, o idealismo.

Grosso modo, a diferença clássica entre materialismo e idealismo encontra-se na ordem que se dá o surgimento do material e do “imaterial”.

Para o idealismo, a ideia é a primeira causa de tudo o que existe, de tal sorte que veio antes e, assim, produziu a matéria. A matéria é um acidente ou uma corporificação do espírito. Segundo esse entendimento, o pensamento e as ideias são os responsáveis pela existência de tudo o que foi elaborado pela humanidade, independentemente da realidade material.

Para o materialismo, primeiro surge a matéria, depois a ideia, esta como um atributo daquela. Todo o existente está na matéria e na natureza. O próprio pensamento é o resultado da organização da matéria. A concepção materialista reconstrói o passado e projeta o porvir pela materialidade de fatos e efeitos.

Na visão materialista, todo o conhecimento produzido e acumulado pela humanidade só foi possível a partir das atividades práticas (primeiro a prática, depois a teoria), decorrentes das necessidades de organização da própria existência.

No idealismo prevalece o plano ideal, formado por entidades metafísicas, transcendentes e imateriais, quais sejam, as ideais, conceitos e formas eternas e imutáveis, que controlam o plano material, este último sendo apenas a cópia imperfeita daquele. Há uma arché, um princípio que deve estar em todos os momentos da existência de tudo no mundo, no começo até o fim, principio pelo qual tudo vem a ser.

Já no materialismo, em sentido contrário, a primazia é da materialidade, sem a qual não haveria base para as ideias, as ideologias, o conhecimento, a tecnologia, etc.  

Nessa linha de entendimento, umas das conclusões possíveis é que a “consciência” (e a inconsciência), as ideias, a ideologia, o espírito (espírito em seu sentido Filosófico), a cultura, as leis, o conhecimento acumulado, ou seja, a “superestrutura”, não se trata de um mero reflexo da matéria, mas de um atributo seu.

No entanto, a materialidade do mundo não se resume à matéria, ou seja, a tudo aquilo que tem massa ou que é corpuscular (aliás, a matéria exibe propriedades tanto de partícula como de onda), possui volume e ocupa lugar no espaço (e no tempo). Engloba a energia (que não é somente é a capacidade de causar a mudança ou fazer o trabalho, tratando-se de um atributo da matéria; de acordo com Einstein, matéria e energia são equivalentes, uma se transformando na outra), energia negra, etc. e o próprio espaço-tempo.

Dito de outra forma, todas as coisas são compostas de matéria e todos os fenômenos são o resultado de interações materiais, cujo teatro de movimentação é o espaço-tempo. Aquilo que vulgarmente chamamos de imaterial, o fenômeno superestrutural, não é uma ausência da matéria, mas um atributo seu ou um nível superior de sua própria organização.  

Para o idealismo, a matéria é criada (ou destruída) a partir de uma nada material (pelo mundo das ideias ou por um ser sobrenatural). Para o materialismo, por sua vez, toda a matéria sempre existiu, porque, como disse Lavoisier, na natureza “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” (lei da conservação).

Na concepção materialista, tudo é physis, sempre em transformação, segundo regras de causa e efeito, no espaço-tempo.

A matéria mais organizada, em forma de consciência, é physis, mas também é nomos.

A physis segue as leis da natureza. A natureza e suas leis subsistem independentemente de consciência humana.

Mas o homem, que se submete à physis, também cria o nomos, que são as leis humanas, aqueles leis que os homens dão a si próprios (e muitas vezes nem sabem – e ai temos a heteronomia, que se contrapõe à autonomia).

O nomos não são leis derivadas do mundo das ideias ou de um Deus, mas da práxis, das relações que os homens mantém entre si (em sociedade) e com a natureza para a sua própria existência. Relações contraditórias (dialéticas).

A natureza, que inicialmente era um meio de subsistência do homem, com o tempo passou a integrar o conjunto dos meios de produção. Por assim dizer, a natureza foi “socializada”, pois sobre ela há uma prática humana organizada, que se de desenvolve no curso da História.

E ai temos as formações sociais e econômicas que se sucedem, como o escravismo, o feudalismo e o capitalismo (até aqui), havendo sobre elas uma “institucionalização” que lhe da legitimidade (para bem e para mal), compreendendo a cultura, as normas jurídicas e morais, a estética, o conhecimento, etc.

Nesse desenrolar histórico, não há intervenção sobrenatural, mas práxis humana. Há a physis e o nomos.

Leio agora no Valor Econômico (ver aqui) que um lote de 5 milhões de doses da vacina de imunização da Covid-1,9 fabricada pela Bharat Biontech, da Índia, ao preço de R$ 800 as duas doses, está sendo comprada por consumidores finais aqui Brasil.

Na lista de quem encomendou, aparecem juízes federais do Rio Grande do Sul (sirvam nossa façanhas de modelo a toda Terra).

Dia desses, o presidente Bolsonaro já havia aprovado a comercialização de 33 milhões de doses da AstraZeneca, que também poderão ser utilizadas fora do SUS, ainda que uma fração. Assim, os ricos se safam com a ciência, aos pobres sobra o curandeirismo oficial da cloroquina!

O viés que exploro aqui não é de ordem legal, mas moral. Diante da dificuldade de o SUS adquirir os imunizantes suficientes para atender a demanda da população brasileira, a grande maioria pobre, é moralmente admissível que essa “mercadoria” escassa (não tem produção suficiente, pelo menos no momento), seja comercializada diretamente ao “consumidor” abastado, ainda que não integre nenhum grupo prioritário?  A conduta não passa a ser imoral na medida em que viola a ordem de grupos prioritários definidos no plano nacional de operacionalização da vacina contra a Covid-19?

Para responder essa indagação “prática”, o filósofo Immanuel Kant recomendaria engendrar uma lei que tivesse validade universal. Como? Estabelecendo uma máxima – o que fazer? – e depois a lei moral, produto da contradição expressa na máxima quando sai do particular para o universal. Com a lei, seria possível estabelecer a ação/conduta moral.

Assim, diante da elaboração da máxima “posso matar outro homem?”, aparece a contradição “nenhum homem vivente, por mais que mate outro homem, aceita ser morto”. Ou seja, se não aprovo que me matem, não posso sair por ai matando os outros, ainda que isso seja do meu interesse particular! Eis a lei!

Trazendo essa esquematização para o caso aqui discutido, teríamos a seguinte máxima: se tenho dinheiro para comprar o imunizante escasso, posso desrespeitar a ordem de grupos prioritários, por ser esse o meu interesse particular? Ora, se não admito que outro afaste o critério de prioridade de grupo porque isso me prejudicaria (caso integrasse grupo de risco), não devo, sob o ponto de vista moral, beneficiar-me do expediente de furar a fila só porque tenho dinheiro para tanto!

Claro, como esclarece Jürgen Habermas, qualquer reflexão mais profunda sobre o agir moral exige a participação na discussão de todas as partes concernidas, o que não é possível aqui nesse espaço.

No entanto, posso assumir o risco de dizer que, para uma parcela da pequena burguesia (e da burguesia) brasileira, não há qualquer problema moral nesse comportamento de desconstruir o critério da priorização de grupos na ação de imunização para a Covid-19.

E também não estou surpreso. Por vários motivos. Vou citar os dois mais perceptíveis:

(i) O governo brasileiro, na figura de seu presidente negacionista e obscurantista, seguidamente emite sinais claros que a melhor diretriz moral para a pandemia é “cada um por si”, até porque os cidadãos de bem e de bens tem seus méritos, vão sobreviver. Sinalo que a aplicação do plano nacional de operacionalização da vacina contra a Covid-19, contendo critérios de priorização por grupos, de certa forma foi uma imposição do STF (além de ser uma construção intelectual e técnica de servidores público da área da saúde e de representações da sociedade civil/grupos profissionais). Caso dependesse exclusivamente do Bolsonaro, talvez ainda estivesse engavetado.

(ii) Na formação social e econômica capitalista, quando o Estado é afastado da regulação, omitindo-se na fixação de regras claras de proteção aos hipossuficientes e cedendo espaço para o “mercado”, acaba por prevalecer o laissez faire, laissez aller, laissez passer. Nesse ultraliberalismo, o interesse do “mais apto” (de quem tem dinheiro, poder econômico) se impõe. Prevalece o utilitarismo, concepção segundo a qual a regra de conduta tem validade se é útil e dá prazer ao indivíduo (e só por extensão ou mediatamente vai atingir a coletividade).

A falta de ação regulamentar do governo é uma das fontes do caos que se formou, inclusive no campo moral. Inaugura-se, assim, uma barbárie institucionalizada, que vai sendo naturalizada pelo poder político e pelo poder econômico.

P.S.: os canalhas golpearam a Dilma com discurso moralista. Recentemente Dilma respondeu com conduta fundamentada em regra moral universal, ao não aceitar a violação da ordem de grupos prioritários!

Arbeit macht frei, “o trabalho liberta”, portão de entrada em Auschwitz

Dia desses foi objeto de ampla de controvérsia nas redes sociais e na grande mídia empresarial a iniciativa de vereadores negros do parlamento municipal da capital gaúcha, que se recusaram a cantar o hino sul-rio-grandense por conta do verso que diz ‘povo que não tem virtude acaba por ser escravo’, considerado pelos insurgentes como racista, na medida em que justifica a escravidão.

Nas redes sociais as opiniões se dividiram. Para muitos, a “intenção” do verso, numa interpretação literal (ou sistemática em relação aos demais versos) não é exaltar a escravidão, mas chamar a atenção para uma consequência da falta de “virtude”.

No meio do alvoroço argumentativo, optei por prestar apoio à conduta de rebeldia dos vereadores, principalmente em razão de a Revolução Farroupilha, movimento no qual se funda o hino – ter servido muito mais aos interesses de estancieiros escravocratas do que às bandeiras republicanas e libertárias. Sem falar do massacre dos Porongos, em que mais de 100 soldados negros foram emboscados e chacinados (vide aqui)

Pois bem, baixada a poeira, ainda mantenho o arrimo.  

E para tanto, trago outro exemplo histórico de como a linguagem é capaz de criar significações distintas, a depender do contexto vivenciado por determinados segmentos de “receptores” da “mensagem”.

O governo da República de Weimar, para fazer propaganda dos efeitos do programa de grandes obras públicas que desenvolveu para combater o desemprego na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, empregou largamente o slogan “O trabalho liberta”, de modo que foi “institucionalizado”.

Com a ascensão do nazismo, a frase não foi inteiramente abandonada, mas ressignificada em função da sua utilização para outro propósito. Com efeito, passou a ser exposta na entrada da grande maioria dos campos de concentração nazistas, como em Auschwitz, na Polônia. Com ou sem intenção de quem determinou a sua utilização, a frase assumiu simbolicamente a característica de desmerecer o povo judeu, justificando os trabalhos forçados e, depois, a matança.

Assim, a expressão “O trabalho liberta”, que numa interpretação literal – e até pelo emprego dado pela República de Weimar – espelha um sentido “virtuoso”, pelo desenrolar histórico assumiu conotação tétrica para os judeus submetidos aos campos de concentração e de extermínio, e que sobreviveram, não havendo como dissociá-la do Holocausto, integrando de forma definitiva a estética nazista.

Por isso, em maio de 2020 o rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), Michel Schlesinger, criticou duramente a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), por publicar a seguinte mensagem: “O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil“.

Segundo o rabino, a mensagem teria uma construção próxima ao slogan do nazismo “O trabalho liberta”, agredindo assim a memória de vítimas do Holocausto e ofendendo a sensibilidade dos sobreviventes (ver aqui).

Leio no Conjur texto do juiz do Trabalho Otávio Torres Calvet, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP e presidente da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho, festejando recente decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADC 66, que declarou a constitucionalidade do art. 129, da Lei 11.196/2005, sendo que uma das consequências possíveis é o sepultamento da presunção da relação de emprego (acesse o texto clicando aqui).

Vou contextualizar. Seguidas decisões da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal têm afastado a aplicação do dispositivo (art. 129, da Lei 11.196/2005), sob o fundamento (a meu ver acertado) de que as empresas burlam o Fisco e flexibilizam normas trabalhistas por meio da chamada “pejotização”. Para combater estas decisões, a Confederação Nacional da Comunicação Social ajuizou a ADC 66, logrando êxito.

Embora o dispositivo em questão trate precipuamente de um tema tributário, a fundamentação da decisão do STF sinaliza a legitimação da chamada “pejotização”, cuja finalidade, todos sabem, é precarizar as relações de emprego.

O articulista Calvet esclarece que a decisão não afeta o princípio da primazia da realidade. Ou seja, se a contratação da pessoa jurídica é uma fraude que busca mascarar uma relação de emprego, a Especializada vai reconhecer o vínculo celetista e assegurar o “contrato mínimo” previsto na CLT.

No entanto, segundo o entendimento de Calvet, algo mudou. O articulista esclarece que a decisão do STF:

 “(…) indica que, nas ações em que se alegue fraude no uso de pessoas jurídicas ou em outras novas formas de organização do trabalho humano, não há de se presumir a referida ilicitude e, portanto, inviável a distribuição do ônus da prova a favor do trabalhador”.

Desse modo, não vai mais bastar ao trabalhador provar que laborou para o empregador – fato que se demonstrado acionava a presunção de emprego. Também terá de comprovar a fraude, uma tarefa hercúlea.

Portanto, se o trabalhador alegar em juízo que a sua pejotização foi uma fraude, exigência para poder vender a sua mão-de-obra com custo menor para a empresa contratante, não será mais incumbência do empregador provar a inexistência da ilicitude, ainda que o labor prestado seja incontroverso.

Com a decisão, o STF legitima – diz que a nossa Constituição autoriza – o aprofundamento da precarização das relações de trabalho, uma resultante da “liberdade econômica”, valor que se hegemoniza.

Mas liberdade econômica para quem? Para os assalariados, que só tem a sua mão-de-obra e trabalho intelectual para vender? Evidentemente que não! Quem vende e quem compra a mão-de-obra não são iguais (materialmente). Quem compra a mão-de-obra, via de regra, tem poder econômico e político! E na execução do contrato, tem poder hierárquico. Não é uma relação entre pessoas com o mesmo grau de liberdade e de necessidade!

Ainda que se crie um regime jurídico que transforme todos assalariados em pessoas jurídicas, nada vai mudar o fato material e social de que estes pejotizados vendem a sua mão-de-obra e que seu labor gera mais valia, operação que “valoriza” o Capital. Estes trabalhadores, ainda que pejotizados, não são donos dos meios de produção – e nem chegarão a tal condição!

Ora, a balança da Justiça, seguindo o que já ocorre com os outros dois poderes da República, vai abandonando a defesa dos direitos sociais, em especial os trabalhistas, para permitir que a crise econômica (mundial) não afete o Capital, o que faz assegurando mecanismos para sua “valorização”, que se dá pelo aumento da extração da mais valia (e, indiretamente, pela desvalorização do próprio trabalho “improdutivo”, ou seja, aquele que não valoriza imediatamente o Capital).

Isso traz uma mudança de configuração no Estado, que de bem-estar social, estabelecido pela Constituição Federal Cidadã de 88, transita para o puramente liberal, mais ao gosto da formação social e econômica capitalista vigente.

É a forma jurídica, superestrutural, amoldando-se à base econômica, diria Marx se vivo fosse.

O Dr. Calvet comemora o caminho que se percorre. Argumenta que se trata de um avanço e que isso trará “(…) uma nova regulamentação do trabalho humano que atenda aos interesses sociais e econômicos (…)”, situação que vai permitir evolução “(…) nos compromissos constitucionais de erradicação da pobreza e redução da desigualdade social, construindo uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos (…)”!

Não sei em que mundo vive o Dr. Calvet. Mas aqui na vida real, a reforma trabalhista não trouxe os empregos prometidos, só ceifou direitos dos assalariados, aumentou a fome, a pobreza e as desigualdades sociais. O “bem de todos”, no momento, é reduzido ao bem dos endinheirados, dos donos dos meios de produção e de uma classe pequeno-burguesa que, em sua maioria, reflete as ideias da classe dominante sobre os direitos trabalhistas (e sociais), assegurando sua hegemonia cultural.

No Reflexões à Esquerda, a partir de uma postagem do professor e historiador Luís Henrique Prado de Santis (para acessar a página, clique aqui), toma corpo um interessante debate sobre as transformações pelas quais passa o mundo do trabalho.

Pois a discussão, dentro de sua dinâmica, foi se espraiado em vários subtemas, um deles levantado pelo Fagner Garcia Vicente, a questão da identidade e das lutas indentitárias.

Vou desembridar o debate para cá no bloguinho, abordando a questão da identidade.

Certa feita, o meu querido amigo e mestre Flavio Bettanin fez uma observação. Disse Bettanin: “a lógica metafísica evidentemente tem seus limites porque ela nega o movimento real, que é contraditório e que traz nessa contradição as sementes da mudança, mas não significa que ela não seja útil para o entendimento das coisas, especialmente o desenvolvimento de um discurso lógico, desde que saibamos das suas restrições”.

Por certo não externou sua posição exatamente com estas palavras, aí é pedir demais da minha memória. Aliás, Bettanin certamente reforçará a sua contribuição nas próximas intervenções, dizendo mais sobre a assertiva que lhe atribui a autoria, inclusive para me desmentir, se for o caso.

Pelo princípio de identidade, segundo a metafísica, tem-se que uma proposição é sempre igual a ela mesma, nunca diferente, uma paridade absoluta. Isso implica na imutabilidade da proposição. Desse princípio decorrem outros dois: o da não contradição (algo não é falso e verdadeiro ao mesmo tempo) e do terceiro excluído (uma afirmação ou é verdadeira, ou é falsa, não há uma terceira opção). Como disse Parmênides, “o ser é, o não-ser não é”.

Levando estes princípios para o “movimento real”, sem qualquer mediação, significaria admitir que as coisas no mundo tem uma identidade específica (A é A), sem contradição (A não é B) e que não sofrem mutações (A não será B) – inclusive o próprio movimento não é efetivo, mas só aparência, um resultado da “ideia”. Ora, dentro de uma concepção dialética (e histórica) tais construções metafísicas são contrafactuais, visto que há movimento, há contradição, há mudança e há um devir.  Lembrando Heráclito: “tudo flui e nada permanece, (…) o mundo é um eterno devir”.  

Mas isso quer dizer que não se pode encontrar uma “identidade” nas coisas e no próprio movimento? A é A e não é B na “fotografia” do momento, embora mais adiante possa ser B? Quando defino o que é a dialética, por exemplo, não estou atribuindo uma identidade para a coisa (um significado para o significante)? Quando conceituo classe proletária, não estou atribuindo a ela uma identidade? Claro que esta “identidade” não tem aquele limite metafísico da imutabilidade (A será sempre A), a classe proletária de ontem não é a mesma da de hoje, nem a de hoje será idêntica à classe proletária num futuro mais distante – e nem sempre ela existirá.

Uma mudança possível dentro da identidade de classe, por exemplo, ocorre quando ela toma consciência de sua situação dentro do “movimento real”, assumindo a identidade de “classe para si”. Assim, nesse aspecto, entender sua “identidade” de classe (que também implica. de certo modo, alterar a identidade anterior), não como uma identidade metafísica, imutável, não contraditória, faz parte do processo de tomada de consciência existencial, política e, principalmente, material.

Assim, a luta da classe proletária (da classe trabalhadora, da classe assalariada, da classe que pelo seu trabalho “valoriza” o Capital ou contribui “externamente” para a valorização Capital – falo aqui do trabalho improdutivo), enquanto movimento, também é, em certo sentido, uma luta identitária e anticapitalista.

Talvez seja um equívoco do pensamento materialista negar-se a investigar as questões ontológicas que se apresentam, omissão que decorre do receio de ser confundido com a cepa metafísica.

(Texto sem correção ortográfica, que fica a cargo do leitor)

Emilly e Rebeca sendo sepultadas

Mas uma crônica sobre o óbvio. Um óbvio abraçado pela nova normalidade e pelo interesse econômico, que por isso mesmo vai para a pasta da desinformação e do desinteresse.

O assassinato, na sexta-feira, de duas primas pobres e negras, Emilly (4 anos) e Rebeca (7 anos), baleadas quando brincavam na porta de casa em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, é mais uma demonstração de que as políticas de segurança pública são voltadas para resguardar brancos e “cidadão de bens”. Negros e pobres não entram na equação de segurados pelo Estado, até porque são considerados o “inimigo no outro lado da trincheira a ser abatido”, na visão militarista dominante.

Familiares das vítimas afirmaram que a polícia atirou nas meninas. “Estava chegando do trabalho e saltei do ônibus. Eu escutei no mínimo dez disparos. O ônibus passou e a blazer estava parada e deu aquele arranco para sair. Ele parou em frente à rua e simplesmente efetuou os disparos”, contou para a imprensa a avó de Rebeca, Lídia Santos.

A PM, por sua vez, negou ter feito qualquer disparo, alegando que estava patrulhando naquele local, quando ouviu os estampidos e foi averiguar.

O caso tem se ser apurado com rigor, é o que se espera. Mas o risco é pelo inconcluso.

Segundo a ONG Rio de Paz, desde 2007 até agora, 79 crianças foram mortas vítimas de armas de fogo no Rio de Janeiro, a maioria delas por balas perdidas. Neste ano, já são 12 o número de crianças mortas por armas de fogo naquele Estado.

Mas o problema não é restrito ao território fluminense.

De acordo com dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Brasil teve ao menos 4.971 crianças e adolescentes mortos de forma violenta em 2019, Desse total, ¾ eram negros (dados são referentes a 21 estados, contemplando 85% da população brasileira). Um detalhe: estas quase 5 mil mortes de crianças e adolescentes foram retiradas de um universo que contabilizou 47.773 mortes violentas no ano passado, mas que não incluiu 13.705 mortes de brasileiros porque não foram esclarecidas.

Quando crianças negras e pobres são mortas, como no caso de Emilly e Rebeca, sempre surge a expectativa que a grande mídia empresarial, que movimenta a opinião pública e a opinião publicada, dará voz aos movimentos sociais e ONGs, fomentando um debate de longo curso sobre política de segurança pública voltada para estes brasileirinhos, além de discutir a violência em geral e o necessário desarmamento.

Também se espera que a sociedade desperte para o problema e cobre das autoridades públicas soluções. E que os detentores de mandatos eletivos, com coragem, assumam um compromisso maior com a causa destes meninos e meninas, criando políticas integrais (desde a segurança pública, passando pela saúde, educação e desembocando na geração de renda e emprego para as famílias).

No entanto, fica tudo como dantes no quartel-general em Abrantes. A imprensa trata do tema sem qualquer profundidade, aborda o fato em si, mas nega-se a classificar estas mortes como resultado de uma política de segurança pública  e de uma política econômica equivocada, classista e racista, depois de dois ou três dias “arquiva” o tema. Os crimes não são elucidados, na grande maioria das vezes. As autoridades públicas mantém conduta de indiferença diante do problema. Panelas não são batidas. Comoção somente entre membros da família e vizinhos.

Assim, segue-se com uma política de segurança pública racista e violenta, cujo “cliente” é o branco e o rico, dentro de uma contexto de economia voltada para concentração de renda e exclusão social. A barbárie vista como “normalidade”.

Mudando um pouco o sentido da frase da campanha presidencial de Bill Clinton, iIt’s the economy, stupid (é a economia, idiota), caso discutir a morte de crianças pobres e negras desnude o sistema econômico de exploração e de exclusão social, melhor não fazer esse debate! Assim pensa a elite econômica brasileira.

General Pazuello e o seu superior

Leio agora na mídia empresarial que o ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello, não anuncia um plano nacional de imunização, fixando uma estratégia de vacinação para prevenção da Covid-10, a ser executado pelos Estados e Municípios assim que uma vacina for disponibilizada, porque teme reação depreciativa do Bolsonaro, seu “superior”.

De fato, Pazuello não age porque não suportaria nova humilhação. Bolsonaro, todos lembram, já desautorizou o general publicamente, como no episódio do recuo de contratação da coronavac, a vacina chinesa. Ali foi “a deixa” para Pazuello preservar sua dignidade e pedir o boné.

Embora com formação militar, Pazuello tem se mostrando um ministro despreparado para o “combate”. É medroso e omisso, não toma iniciativa, esconde-se atrás de uma mesa. Um general sem autoridade, que não enfrenta o negacionismo de Bolsonaro e não dá um rumo para a política nacional de combate à Covid-19.

O Brasil supera 6 milhões de casos de Covid-19, com mais de 169 mil mortes. Mas quem fala da pandemia no governo Bolsonaro é o Paulo Guedes (para negar a gravidade), não o responsável pela área da saúde!

E agora uma segunda onda da pandemia está no horizonte, mas os brasileiros não escutam a voz do ministro da Saúde, que sequer dá o ar da graça para prestar constas do não aproveitamento dos testes de Covid-19, que se encaminham à ultrapassagem do prazo de validade.

Aliás, não há justificativa aceitável para o Pazuello estocar mais de 6 milhões de testes para o diagnóstico da COVID-19, abandonados num armazém em Guarulhos, que perderão a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021. Qual a razão, afinal, para não distribuir estes testes no SUS/municípios? Ordens do Bolsonaro? E quem vai ressarcir a União pelos prejuízos, já que cada teste, considerado “ouro” pela qualidade, custa quase R$ 400,00 (quatrocentos reais) na rede privada?

O general Pazuello mais parece um zumbi, perambulando pelos corredores do Ministério da Saúde sem se dar conta que já é um ministro cujo prazo de validade caminha para o vencimento, tais quais os testes da Covid-19 sob sua responsabilidade.

A execução do soldador João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, por dois homens brancos, seguranças do Carrefour, na capital gaúcha, na véspera do Dia da Consciência Negra, colocou à vista de todos, mais uma vez, que o racismo aqui no Brasil elimina vidas negras. E também expôs, de novo, o negacionismo como discurso oficial do governo brasileiro.

O racismo cria privilégios econômicos e sociais para os brancos e coloca os negros em posições subalternas, isso é facilmente perceptível nas repartições públicas, nos presídios, na periferia, no supermercado ou na rua. As estáticas reveladas pela mídia dão conta que de 100 homicídios no país, 75 são de pessoas negras.

Quem mais sofre com a formação social e econômica vigente é o negro. O trabalhador assalariado em geral é explorado pelo capital, mas o trabalhador negro, antes escravo, é o empregado mais espoliado. Isso quando não é totalmente excluído e, na ponta, “cancelado”, seja pela forças da “segurança” pública, seja pela atuação da “segurança” privada.

As ciências sociais, mediante pesquisas bem fundadas, apontam que no Brasil o racismo faz parte da própria estruturação social. À título de exemplo, cito o tema de doutorado de Humberto Bersani, que ao pesquisar como o racismo se perpetua nas estruturas do poder (racismo institucional), concluiu que esse tipo de preconceito é um instrumento estrutural, uma forma de opressão naturalizada e que perpassa todos os outros elementos sociais.

Bersani encontrou muito racismo institucional. Analisou 1.044 decisões proferidas por 24 Tribunais Regionais do Trabalho e outras tomadas pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). E verificou que nestas decisões não havia manifestação sobre qualquer forma de racismo ou discriminação racial, como se esses fenômenos não existissem nas relações de trabalho.

Mas Bersani ultrapassa o racismo institucional, batendo às portas do racismo estrutural. Aduz ele que o preconceito em desfavor do negro está presente em qualquer recorte racial que se faça na população brasileira. Para o pesquisador, o racismo

“(…) transcende o âmbito institucional, pois está na essência da sociedade e, assim, é apropriado para manter, reproduzir e recriar desigualdades e privilégios, revelando-se como mecanismo colocado para perpetuar o atual estado das coisas”.

Em suma, o racismo é verificável empiricamente, nas nossas experiências do cotidiano, como no caso da morte de João Alberto. E comprovado pela ciência.

Mesmo assim, surgem as teorias de negação do racismo e boicote à ciência, que cumprem o papel de sedimentar o racismo estrutural. E, desgraçadamente, estas teorias tem representantes no Palácio do Planalto!

O vice presidente Hamilton Mourão disse, em entrevista, que no Brasil inexiste racismo. Criticado, repisou seu entendimento.

O presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, também assegurou na sexta, em rede social, que não há racismo estrutural no Brasil, admitindo apenas discriminação “circunstancial”.

Depois, foi a vez do Bolsonaro. Para o presidente, asseverar que há racismo no Brasil é dar causa a “tensões entre nosso próprio povo”, e que essa divisão traz vulnerabilidade, ameaçando a soberania!

Portanto, na visão do “mito”, abordar o racismo no Brasil é um ato que coloca a soberania do país em risco. Bolsonaro ficou a um passo de classificar a denúncia ao racismo como crime contra a segurança nacional! Um absurdo!

No seu discurso para o G20 no sábado, reunião virtual, Bolsonaro, para o espanto de todos, vendeu a ficção de um Brasil que se construiu dentro de uma democracia racial, onde negros, indígenas e brancos eram iguais e receberam as mesmas oportunidades.

Essa reafirmação negacionista de Bolsonaro para o mundo sobre a discriminação racial – anteriormente negou as mudanças climáticas, negou a pandemia da Covid-19, negou a destruição ambiental em curso na Amazônia, etc. – não só confirma o racismo institucional, mas também revela, mais uma vez, uma crise da verdade, como já havia ressaltado recentemente o jornalista alemão Thomas Milz, do jornal Neue Zürcher Zeitung.

Para Milz, Bolsonaro dá novo fôlego ao negacionismo, que se reposiciona dentro da sociedade brasileira e enfraquece preceitos básicos, sedimentados pela ciência no mundo.

O jornalista alemão conclui, com acerto, que Bolsonaro não pensa em solucionar crises. Ao contrário, sua estratégia de poder é exatamente alimentar crises, criando e culpando inimigos imaginários, situação que une sua “base”.

Assim, quando Bolsonaro sustenta que no Brasil não há racismo, quer mesmo é alimentar uma polêmica para implodir qualquer discussão com fundamento científico e mobilizar sua hoste ultraconservadora, que lhe colocou no poder.

O negacionismo promovido pelo Presidente Bolsonaro e pelo seu governo é um retrocesso que vai custar (já custa) muito caro para o Brasil. E se mantém firme porque é legitimado pela elite econômica e pelas instituições, que nada fazem de concreto para detê-lo, o que significa que seu modo de agir é visto pela elite econômica, política e jurídica como um “mal menor”, necessário para garantir seus privilégios.

Muitos dirão que as instituições por mim criticadas, por ocasião da morte de João Alberto, soltaram notinhas desfavoráveis ao racismo estrutural. Pois bem, os “bilhetes” deixem comigo, dos homens que comandam as instituições espero ação contundente! Contenham o racista e negacionista Bolsonaro!

Veleda e Ivo pelas ruas de São Luiz Gonzaga, falando com a comunidade

Rodrigo Veleda

Em nenhum momento imaginamos que seria fácil, como de fato não foi. Lutamos contra tudo e todos, contra uma ampla coligação com o domínio da máquina pública, contra o poder econômico e político. Alguns me perguntam se valeu a pena… bem… 3.781 homens e mulheres nos fazem acreditar que sim, que valeu a pena!!

Acreditamos muito no potencial da nossa São Luiz Gonzaga e esperamos que o Poder Público Municipal tenha a capacidade de criar as condições necessárias para o seu pleno desenvolvimento, o que defendemos através de um projeto de mudança com propostas objetivas.

Contudo, democraticamente, a população optou pela continuidade do governo atual. Dessa forma, ontem mesmo liguei para o prefeito reeleito e desejei sucesso no próximo mandato.

Da nossa parte, continuaremos na oposição lutando por uma sociedade mais justa e fraterna e sempre colocando em primeiro plano os interesses de São Luiz Gonzaga como temos feito há muitos anos.

Obrigado a todos e todas que depositaram em nós sua confiança!

A luta continua!

As eleições municipais de 2020 já fazem parte da História. Por isso mesmo, não podem ser esquecidas. Não pelo resultado em si (não se elegeu o Prefeito. mas manteve-se duas cadeiras na Câmara de Vereadores), e sim pela aprendizagem e pela luta da esquerda local.

Têm personagens que se destacaram, merecem referência, registro.

Inicio pelos aos companheiros que colocaram seus nomes à disposição do PT para concorrer ao cargo de vereador. Tarefa que exigiu de todos muito esforço e dedicação. Cada um contribuiu com que o seu arsenal.

Parabéns a quem foi eleito, Ana (a mais votada entre todos!) e Zé. Repetirão o grande trabalho na Câmara de Vereadores em defesa da inclusão social e de suas bandeiras específicas.

Os suplentes também merecem reconhecimento, porque levaram, ao seu jeito e na sua medida, as propostas do PT para cada canto de São Luiz Gonzaga.

A vitória para a esquerda não se resume a ganhar uma eleição. Participar da luta, dialogar com a população, apresentar-se como alternativa de um projeto democrático-popular já é uma grande vitória! E temos aquela tarefa de Sísifo, de sempre e sempre propor a organização das comunidades para que lutem pelos seus direitos. E isso não é ação de campanha eleitoral, mas luta cotidiana.

Minha saudação especial ao Rodrigo Veleda e ao Ivo Agnes, que foram gigantesorgulharam a militância pela conduta e pela propostas. Representaram a esquerda e PT sem qualquer ressalva!

Por fim, dirijo-me à militância petista e aos simpatizantes, ilustrada na imagem acima, que deram um brilho especial à campanha.

A LUTA CONTINUA! E JÁ COMEÇA AGORA!

(1) Na mitologia grega, Sísifo recebeu uma punição: para todo sempre rolava uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que estava quase no topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida. Então, Sísifo começava seu esforço de novo.

Aumento do preço do arroz pesa no bolso dos trabalhadores

Preguiça e oportunismo eleitoral

O presidente miliciano, Bolsonaro, além de preguiçoso é “batedor de carteira”. Não cria nenhuma política pública social. E agora, oportunista, pressionado pelo famigerado “centrão” e pensando na reeleição, apropria-se dos programas sociais dos governos do PT, apenas troca os nomes!

Arroz valendo ouro

Bolsonaro permitiu que o Brasil exportasse arroz sem controle. Resultado: falta arroz, não tem estoque regulador e o preço disparou.

Incompetência desse governo reacionário, cuja política de segurança alimentar se subordina ao interesse econômico!

O “efeito Bolsonaro” na pandemia

Já são mais de 120 mil brasileiros mortos pela Covid-19.

E ainda não se tem uma política pública nacional para o enfrentamento!

Muitas vidas poderia ter sido salvas não fosse a omissão de Bolsonaro!

O mídia de interesse

Parcela da mídia empresarial tem batido forte nos escândalos envolvendo a família Bolsonaro. E com razão.

Mão não podemos ficar iludidos. É um jornalismo de interesse.

Recordando: no embate entre a presidente Dilma e o presidente da Câmara Eduardo Cunha, a mídia empresarial e o mercado ficaram ao lado do bandido!

Imagem do arquivo pessoal. Verão de 2019.

Aqui em casa estamos curtindo o frio em quarentena.

Desde sexta, dez dias sem sair de casa, seguindo o protocolo, cumprindo o nosso dever.

Minha esposa Simone, Enfermeira, trabalha da unidade de saúde do centro. Uma outra profissional de saúde foi testada com Covid, de modo que todos lá na unidade de saúde – e seus familiares – foram “quarentenados” por precaução.

Os exames serão coletados e irão revelar se há outros casos de Covid.

Cuidem-se. A si e aos outros.

Não neguem a Covid-19.

Lembrem-se que os profissionais de saúde não são imunes e tem familiares.

Quem se expõem, expõem os demais.

Ter opinião apresenta seus custos, ainda mais quando se critica o sistema de exploração econômica e social. Sacrifícios pessoais e profissionais, não há perdão, a retaliação corre solta.

Mas dá uma sensação de liberdade e um sentimento de estar vivo!

Quem não vê, não houve e não fala é um prisioneiro que ainda não se deu conta de sua miséria existencial.

Claro, quem opina também erra. Já cometi meus equívocos! Mas aí vem a obrigação de assumir e retratar.

O clã Bolsonaro, sentindo-se encurralado pelo inquérito do STF sobre fake news, aumentou o tom da guerrilha verbal dirigida às instituições democráticas, isso nas vozes do pater familias e do rebento Eduardo. O zero três, inclusive, anunciou a inevitável ruptura, que não seria mais uma questão de se, mas de quando.

A situação é absurda e inaceitável – e não de agora! Bolsonaro, antes mesmo de assumir a presidência, já ameaçava estabelecer um regime de exceção se os demais poderes e instituições da República não lhe prestassem continência. No curso do mandato, Bolsonaro e família foram aperfeiçoando-se na ousadia.

Nesse contexto de negação do Estado Democrático de Direito, o que mais chama a atenção é o comportamento omisso do mercado. Esse ente mágico e, supostamente liberal, não esboça qualquer reação contra os reiterados anúncios de golpe.

Vou esclarecer o que quero dizer quando me refiro ao mercado. A expressão mercado comumente é empregada para designar o conjunto de transações econômicas, isto é, o espaço de troca de mercadorias (e serviços), cujos sujeitos são os compradores (a demanda) e os vendedores (a oferta). Dentro do mercado em geral, há o mercado financeiro, cujas mercadorias disponibilizadas para negócios são ativos financeiros, como ações, títulos (financiamentos bancários, por exemplo) e câmbio.

Aliás, segundo a teoria liberal (vide Milton Friedman), o mercado financeiro, dentro do mercado em geral, é o principal potencializar do crescimento econômico. Ou seja, no atual estágio da formação social e econômica capitalista, a economia só funciona com uma mercado financeiro robusto e guloso. Glutonaria que explica a destinação da metade do orçamento da União para esse comilão! Isso mesmo, o custo do mercado financeiro para o Brasil é maior do que os investimentos em saúde, educação e assistência social! É o bolsa-rentista!

Essa centralidade, esse grau de  importância para o funcionamento do capitalismo, confere ao mercado financeiro a hegemonia do exercício do poder econômico e, via de consequência, do poder em geral, já que o poder político/institucional, recorrentemente, diante dele – o mercado financeiro -, ajoelha-se.

Não é errado dizer que o mercado financeiro, que tem natureza internacional, globalizada, é o atual oxigênio do capitalismo, permitindo o acúmulo de capital (nas mãos de alguns poucos), o que faz saqueando as riquezas nacionais dos países em desenvolvimento, numa relação de custo/benefício desfavorável ao mundo do trabalho, onde efetivamente são produzidas as riquezas. Não por outro motivo, sempre que há uma crise econômica, os primeiros sacrificados são os salários e os empregos.

Mas o mercado é um objeto, um instrumento. Por trás do mercado exitem pessoas a operá-lo e, ainda, os proprietários do capital (dos títulos, do créditos, das ações, do dinheiro, etc.). Então, quando se fala em mercado, também se está a designar estas pessoas.

Voltemos ao cenário de devaneios e desmandos dos Bolsonaro.

O mercado financeiro, via de regra, fica nervoso com movimentações políticas de Brasília. No entanto, parece relativamente sossegado, tranquilito, mesmo diante da ofensiva bolsonarista contra a democracia. Os donos do capital financeiro não demonstram qualquer preocupação mais séria, focam mais na crise atual do capitalismo e nos efeitos econômicos da pandemia do coronavírus.

E qual a razão da passividade dessa gente poderosa? Ora, simples. Com ou sem golpe, com ou sem AI-5, com ou sem democracia parlamentar, com ou sem Judiciário independente, sabem que os mecanismos de acumulação dos bancos, das bolsas e de outros setores do mercado financeiro será protegido.

Confiam, estes senhores do capital, que o Estado brasileiro, aconteça o que acontecer, desde que o Ministério da Economia permaneça nas mãos de um dos seus, tal qual é o Guedes, vai continuar sendo um gabinete de gestão e de proteção dos seus interesses. O mercado financeiro, por assim dizer, será o último bastião a ser atacado.

De certo modo, a democracia (o poder do povo), quando mais desenvolvida, mais atrapalha os negócios do mercado financeiro, que só “florescem” num ambiente de “plena liberdade”, ou seja, sem qualquer regulação. A contradição pode ser assim resumida: para o mercado, somente uma elite, com méritos, pode acumular, os demais devem produzir as riqueza com um mínimo de custos; para a democracia substantiva, todos tem de participar da produção e na distribuição da riqueza, produzindo inclusive as regras desse processo, o que inibe a acumulação nas mãos de uma elite.

O aprofundamento da democracia – e aqui tenho em mente a democracia participativa – tem o potencial de pulverizar o poder econômico, o que ocorrerá na mesma razão da desconcentração da riqueza. O bolsonarismo, mesmo com toda sua loucura, funciona com um anteparo aos eventuais arroubos de autonomia popular.

Se o golpe anunciado acontecer – e se sustentar “no dia seguinte” -, o mercado financeiro estará alegremente integrado.

Estatuas de Marx e Engels, Berlim, Alemanha

O professor (e amigo) Paulo Leal, comentando o post O materialismo inglês e o capitalismo, fez o seguinte aparte:

“Amigo, seu texto tem informações importantes (…). Então, para polemizar, que é ótimo nesta seara, quero divergir sobre uma questão fundamental. Marx e Engels não são filósofos. São pensadores. O papel da filosofia é de pôr a si, a metafísica e as ciências em ordem no âmbito do espírito humano.(…). Abraços”.

Como se vê, Leal traz uma instigante controvérsia, desdobrada em duas afirmações: (i) Marx não é filósofo e (ii) o papel da Filosofia é ordenar, no espírito humano, a metafísica e as ciências.

As duas assertivas são conexas porque uma decorre da outra. Marx não é filósofo porque suas reflexões não cumprem o propósito da Filosofia, que é pôr o mundo em ordem segundo leis inerentes à própria razão.

Mas qual seria, afinal, o papel da Filosofia? Vários filósofos, diante desta indagação, formularam respostas diferentes. Exemplificando, para os pré-socráticos a Filosofia teria por objeto a Cosmologia, ou seja, o estudo sobre as origens do universo e da natureza, sem recorrer às explicações mitológicas; já para Sócrates, a Filosofia deveria se debruçar sobre a atividade humana no mundo, entre as quais, a política, o conhecimento e a justiça. E assim vai.

Verifico que o conceito de Filosofia empregado por Leal tem forte influência no racionalismo de Rene Descartes (1596-1650) e, principalmente, de Immanuel Kant (1724-1804) (ver aqui ). Por isso, minha resposta exige rápidas pinceladas no pensamento desses dois gigantes.

Sabidamente, tanto Descartes como Kant desenvolveram um filosofia dualista, mesclando elementos idealistas e materialistas, mas submetendo os aspectos materiais aos ideais.

Descartes considerou que a tarefa fundamental da filosofia é renunciar a todos os dogmas e opiniões herdadas e achar um princípio absolutamente fidedigno que sirva de ponto de partida para filosofar. Começa com a dúvida sobre a existência das coisas materiais, ao final concluindo que o pensamento é inegável (penso, logo existo).

Essa conclusão de Descartes teve uma consequência: passou a compreender a atividade de pensar, que é uma faculdade do cérebro humano, como uma substância metafísica imaterial. Assim, para Descartes, tem-se a matéria, a substância física, e o espírito, a substância pensante. São substâncias distintas, sem relação de dependência, mas que estão associadas um corpo e, assim, interagem.

Essa dualidade “cartesiana” expressa uma metafísica, já que postula a existência de ideias inatas e da substância imaterial, embora associadas, paradoxalmente, a uma física materialista.

Ainda dentro dessa dualidade, Descartes fracionou as ideias na consciência humana (substância pensante) em derivadas, originadas dos sentidos (interação com a matéria, com a física), e inatas, decorrentes da intuição. Seu idealismo, nesse ponto, é bem patente.

Os elementos materialistas da filosofia de Descartes, aliás, não foram aceitos dentro do contexto de poder da formação social e econômica feudal de então. O ensino da filosofia cartesiana foi proibido, por exemplo, nos Estados holandeses (1655) e em Paris (1671). Já seus livros foram incluídas na lista das leituras proibidas pela Igreja de Roma (1663). Isso demonstra que sua Filosofia, em que pese seus limites, foi um alento para aquele período, porque confrontou o status quo.

Kant, por sua vez, seguiu, em termos, um roteiro semelhante ao de Descartes. Dizia ele que para conhecer o mundo era necessário, primeiramente, questionar a própria faculdade do conhecimento, o que fez pela crítica da razão humana.

Ao término do seu esforço crítico, Kant engendrou uma metafísica que separa o processo do conhecimento do objeto que está sendo conhecido. Para Kant, há no mundo objetivo (material) a “coisa em si”, que existe, mas não pode ser conhecida. O que pode ser percebido é tão somente o fenômeno resultante da coisa.

Desse modo, Kant admite que o conhecimento tem base inicial na experiência, com limite nos fenômenos singulares. Todavia, esse mundo dos fenômenos, formado por singularidades, é caótico e por conta disso não reúne condições para fornecer um conhecimento universal que dê lastro à ciência. E aí entra a razão, que vai ordenar esse caosmediante a aplicação de leis universaisnecessárias e apriorísticas (ou seja, anteriores e independentes da experiência/ação humana).

Nesse ponto, se percebe o idealismo kantiano. Conforme sua filosofia, não é o nosso conhecimento que é moldado segundo os objetos (a materialidade), mas são os objetos que são moldados de acordo com o nosso entendimento, na exata medida em que são ordenados pela razão, observadas leis universais, inerentes à consciência e que não dependem da experiência.

A fração idealista (e dominante) da filosofia de Kant se situa no apriorismo, uma (suposta) faculdade da razão (imutável e, por isso, a-histórica, metafísica) de impor a universalidade e a necessidade no mundo caótico dos fenômenos. Esse “por em ordem” é um recurso puramente idealista certo que dispensa a experiência concreta (é a priori), ou seja, a ação do homem sobre a natureza não possui qualquer relação de dependência com o desenrolar da História, apresentando-se como imutável (o seu núcleo metafísico, que nega o contraditório e a mudança).

Uma ressalva, para evitar mal-entendidos. Kant, que é dualista, não nega que a experiência, através da percepções sensíveis, alimenta o conhecimento sobre os objetos. Mas esse fomento é fora de ordem, sem muito sentido. Somente pelo entendimento (a analítica transcendental) – uma das faculdades da função conhecedora -, através de suas categorias (quantidade, qualidade, relação e modalidade), há a introdução da lei universal, a causa, pondo ordem (unificando) no conteúdo caótico repassado pela experiência.

Desse modo, a causalidade (um fenômeno como causa de outro, que é o efeito), não se encontra no mundo objetivo, mas é o resultado da intervenção da categoria apriorística da relação (que engloba a categoria da causa e efeito).

Dito isso, uma síntese apertada do pensamento de Descartes e Kant, passo a responder Leal. No entanto, inverto as questões, abordando inicialmente se o papel da Filosofia é ordenar, no espírito humano, a metafísica e as ciências.

Pois tenho para mim que a Filosofia cumpre função maior do que somente dar uma lei universal e, por ela, ordenar, no âmbito da consciência, conhecimento teórico e experimental.

Dizer que essa função ordenadora é o objeto único da Filosofia vai reduzi-la ao racionalismo e, via de consequência, ao idealismo (subjetivo). Ocorre que outros sistemas filosóficos foram construídos e são reconhecidos pela comunidade filosófica. E ainda que se discorde de um ou de vários sistemas, trata-se de Filosofia.

Agora passo à primeira questão, se Marx e Engels são considerados filósofos – ou só pensadores.

Indiscutivelmente, Marx (não vou tratar aqui de Engels) confrontou o idealismo (o subjetivo e o objetivo), assim como apontou as limitações das correntes materialistas de até então, como na crítica a Feuerbach. E o fez filosofando (também o fez como economista, sociólogo e historiador), através do que se convencionou chamar de marxismo, subdividido em materialismo dialético (interpretação da natureza) e materialismo histórico (aplicação do materialismo dialético no estudo das relações econômicas e sociais).

O método dialético marxista, em contraste com o racionalismo, sustenta o seguinte, em síntese:

(i) a natureza não é uma junção caótica de objetos e fenômenos, desligados e isolados uns dos outros e sem nenhuma relação de dependência entre si, mas uma totalidade, no sentido que estes objetos e os fenômenos se acham organicamente vinculados uns aos outros, se interdependem e se condicionam mutuamente;

(ii) a natureza não é imóvel, parado e imutável, mas sujeita a movimento e a mudança constante (quantitativas e qualitativas);

(iii) a natureza não assume um aspecto metafísico, de identidade lógica, mas é contraditória, sendo que o movimento nasce desta contradição interna;

(iv) assim, os objetos e fenômenos não devem ser estudados somente na ótica de suas relações e do mútuo condicionamento, mas também a partir de seu movimento (transformações) e de suas contradições (a causa destas transformações);

(v) o mundo não é a materialização do “espírito universal”, da “consciência” ou da “ideia absoluta”, visto que é, por sua natureza, algo material; não existem leis universais, vertidas da razão, para moldar a matéria, já que o próprio mundo material molda-se a si próprio, consoante suas leis;

(vi) a matéria (o ser, a natureza) é uma realidade objetiva, existe fora de nossa consciência e independentemente dela, o que refuta a compreensão idealista segundo a qual somente a nossa consciência tem uma existência real e que o mundo material só existe dentro dela (ou a partir dela) ou em nossas sensações e percepções; a matéria não é produto do espírito, mas este, o psíquico, é o produto da matéria, de um órgão material, o cérebro.

(vii) as coisas da natureza e os fenômenos sociais são cognoscíveis, podem ser conhecidas mediante a nossa ação prática e experimental, ainda que não de uma só vez, mas no desenrolar da História e a depender a ação humana;

(viii) o conhecimento adquirido sobre a natureza e sobre as relações sociais são instrumentos de transformação (e não somente de contemplação).

Inegavelmente esse conjunto de postulados e conclusões, apresentados acima como suma, tem natureza nitidamente filosófica, de modo que Marx deve ser reconhecido como um grande filósofo.

Aliás, o último tópico do pensamento marxista acima alinhavado (o “viii”) já se vê na fração materialista do pensamento cartesiano. No Discurso do Método, Descartes critica a filosofia contemplativa da escolástica e diz que os resultados práticos da ciência deveriam ser empregados “para todos os fins úteis à que se presta”, de tal sorte que “poderíamos converter-nos em mestres e donos da natureza, e contribuir para o aperfeiçoamento da vida humana”.

Esse Descartes tem uma nuança “marxista”. E dá à Filosofia uma missão mais ampla do que a de “ordenar” o mundo segundo leis estabelecidas pela razão.

A associação do idealismo à ascensão da burguesia ao poder – e à consolidação da formação social e econômica capitalista – é muito comum. Não é incorreto, mas também não é toda a realidade, pelo menos na perspectiva histórica da Inglaterra.

Com efeito, correntes materialistas do séc. XVII também foram importantes para o capitalismo nascente, na medida que fundamentaram as ciências experimentais e os avanços tecnológicos, sem os quais não haveria uma Revolução Industrial no século seguinte.

Karl Marx (e Friedrich Engels), indiscutivelmente um filósofo materialista, considerou Francis Bacon (1561-1626) o pai do materialismo inglês (e das ciências experimentais dos tempos modernos). Thomas Hobbes (1588-1679) foi o continuador do materialismo de Bacon.

Pode-se afirmar que Hobbes, autor do Leviatã, foi uma materialista mais radical que Bacon, inadmitindo a existência de quaisquer substâncias imateriais (saber inato, deuses, alma, etc), o que significou a rejeição completa, dentro da filosofia, da escolástica e das concepções teológicas.

Tem-se, assim, a tentativa de abandono da metafísica – que buscava a “essência do ser” dentro de conceitos de imutabilidade -, substituída pela investigação das causas e propriedades das coisas (tudo aquilo que é corpóreo, que tem existência material), consideradas em seu movimento.

Para a dupla em questão, o proveito e o bem estar do homem é o objetivo da filosofia (assim, rejeitando a mera função especulativa), esta última uma disciplina dos corpos (da matéria), sejam eles naturais (criados segundo regras da natureza) ou artificiais (criados pelo homem, como por exemplo o Estado). Para Bacon e Hobbes, no ambiente em que não existem corpos reais, não há sentido algum em filosofar.

No campo da teoria do conhecimento, o materialismo inglês, em oposição à escola racionalista, recusa o saber inato, que despreza os sentidos, afirmando que só se conhece aquilo que é percebido pelos sentidos e pela experiência. Por isso, esse materialismo foi nomeado de empirismo.

A Inglaterra de Bacon e Hobbes, meados do século XVII, estava num processo de transição da formação social e econômica feudal para a capitalista. Burguesia e a nobreza aburguesada, aliadas, buscavam a consolidação como classes governantes, de modo que confrontavam o poder real, a nobreza feudal e a igreja (clero).  

Nesse contexto, o materialismo dos dois filósofos serviu para robustecer, no campo ideológico/simbólico, a nova estrutura econômica que se erguia (obra completada por pensadores do séc. XVIII, como Locke e Hume).

Leio na redes sociais um discurso sobre a importância de não se temer a pandemia do novo coronavírus, de se ter coragem para seguir em frente. O argumento é aparentemente razoável. Na casca, almeja evitar que as pessoas, diante do avanço da COVID-19, não entrem em pânico, passando a agir de forma descontrolada ou acovardada, soldados desertores. Mas na polpa, ai a conversa é bem outra.

A mensagem central desse discurso do “não temam”: a falta de coragem impede que sejam tomadas as decisões razoáveis que se fazem necessárias!

E quais seriam as tais decisões razoáveis? Nesse ponto o discurso entrega a intenção de quem o profere: flexibilizar ao máximo – e o mais breve possível – o isolamento social para o bem da economia. Dá a entender que as autoridades sanitárias, movidas pelo pavor, estão trilhando caminhos equivocadas, negligenciando alternativas mais eficientes. E que isso vai destruir a economia.

Não vou abordar aqui todo o teor desses argumentos. Até porque me parece claro que as medidas de isolamento social recomendadas pela Organização Mundial de Saúde – e até aqui adotadas em quase toda sua extensão por prefeitos e governadores – tem a ciência como base, não o medo. E o isolamento não proposto não é “ad aeternum” e tem como objetivo principal forçar “achatamento da curva”, dando tempo para o sistema de saúde, sem sobrecarga, organizar-se e dar uma resposta.

Fixo-me na questão do medo. Porque sentir medo pode ser a diferença nessa guerra que travamos.

Não estou dizendo aqui que a saída é aterrorizar as pessoas, pintando cenários catastróficos como resultado inevitável da pandemia. Isso só iria colaborar para adoecer as pessoas, provocando todo tipo de transtorno emocional (depressão, ansiedade, síndrome do pânico, etc).

Pânico, não. Mas medo em “doses controladas”, sim.

Na mitologia grega, situações de profundo pavor repentino, sem uma causa concreta, eram atribuídas ao deus Pã, uma figura assustadora – metade animal, metade homem, com chifres, membros inferiores, cascos e orelhas de bode. Vivia recluso nas montanhas da Arcádia e se divertia aparecendo repentinamente para as pessoas que passavam na região. Assustadas, corriam de forma desenfreada, sem rumo.

Na verdade, Pã era a explicação mítica encontrada pelos gregos antigos para justificar o profundo medo que experimentavam quando tinham de atravessar, sozinhos e à noite, bosques e locais a esmo. Não havia uma causa concreta, uma ameaça real para o medo. A situação de risco era fruto da imaginação, provocada pelo cenário “ameaçador”. Então, atribuía-se aquele sentimento emocional à entidade Pã.

Por isso, o pânico é identificado como um medo infundado ou exagerado, causado pela imaginação.

Hoje, sabe-se que sentir um tanto de medo é saudável. O medo, afinal, é uma reação psíquica e somática do ser humano, por vezes instintiva, que o alerta sobre uma situação de perigo. Um mecanismo de sobrevivência, portanto. Se a causa é real, o medo se justifica. E a ameaça do coronavírus não é fruto da imaginação!

O medo que resulta de uma causa real não é sinônimo de covardia. Ao contrário, agir com medo exige coragem! E tem a lambuja da cautela. Quem teme, planeja seus passos com cuidado, evitando se expor a situações de risco desnecessárias.

As aglomerações vistas na cidade, desnecessárias, evidenciam que muitos de nós ainda não temem a COVID-19. Assim, voluntariamente ou não, sabota-se o esforço de tantos outros que só circulam nas ruas quando necessário.

Quando se olha para os EUA, o “melhor” fruto do capitalismo, centro de riqueza, tecnologia e opulência, e se descobre que em poucos dias mais de 5 mil pessoas morreram pelo coronavírus – no mundo, são quase 50 mil mortes -, os brasileiros, que moram da periferia do sistema, devem temer. Só esse medo é que vai manter o nosso sinal de alerta ligado!

E que ninguém ignore: aqui no Brasil, a travessia do bosque só foi iniciada, Pã ainda não se mostrou por inteiro.

Manifestantes fazem carreata em Manaus contra o isolamento social preventivo ao coronavírus. Foto: Bruno Kelly / Reuters

Carreata em favor da reabertura do comércio local e, portanto, contra o isolamento social horizontal preventivo, organizada por empresários, está sendo realizada nesse momento em São Luiz Gonzaga (9 horas), em plena crise do coronavírus!

Pelo que foi divulgado, o MP arquivou procedimento iniciado por representação que noticiava o ato e pedia providência para salvaguardar o esforço preventivo (com vista ao achatamento da curva) até aqui realizado.

A entidade que representou, argumentou o seguinte (recorte da representação):

E também ressaltou o seguinte:

Também foi dito, na representação, que diante do número expressivo de pessoas que potencialmente irão se aglomerar na concentração dessa atividade, os riscos à saúde pública local são imensuráveis.

No entanto, segundo o MP, a carreata nada mais é do que o “exercício de direitos e liberdades individuais” e “não ferem regras sanitárias”.

Assim, consoante o MP, a carreata não representa qualquer ameaça à saúde dos demais são-luisenses.

Não comungo desse entendimento do MP. Em carreatas, há sim potencial de aglomeração dos participantes antes (na organização), durante e depois da atividade, violando normas sanitárias,recomendação da Organização Mundial de Saúde e o direito à saúde dos sãoluizenses.

Além disso, uma carreata sempre é atrativo para as pessoas se reunirem na rua a fim de visualizá-la. Aliás, não é esse o objetivo dessa inciativa, a visibilidade?

Também deve ser considerado que há outras formas mais seguras de os comerciantes expressarem sua opinião sobre o isolamento social e a forma de enfrentar a pandemia.

Mesmo que a Brigada Militar acompanhe o evento, conforme determinado pelo MP, não há como garantir que não ocorra nenhuma das situações que eventualmente possibilitem a transmissão do vírus.

Getúlio Vargas (1883 – 1954). (Photo by Keystone/Getty Images)

O amigo e deputado estadual Jeferson Fernandes (PT) divulgou vídeo de manifestação de pais e professores, ontem à tarde, em POA. A comunidade escolar estava protestando porque o Prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) remanejou professores de carreira da Escola Neusa Brizola para serem substituídos por terceirizados.

Esse fato não é isolado. Pelo andar da carruagem vai ser tornar cotidiano em todo território nacional.

Certa feita, o ex-presidente FHC, quando alojado no Planalto, disse que iria dar cabo na Era Vargas. Falava ele de reduzir as atribuições do Estado no campo da intervenção na economia e, também, de implodir o modelo weberiano, que diz respeito ao quadro de pessoal da Administração Pública, com acesso via concurso público, cargos de acordo com a especialização de competência, atribuições do cargo definidas em lei, carreira, impessoalidade, registro documental rígido, etc.

Para os arautos do neoliberalismo, o modelo weberiano é ultrapassado, muito pesado, corresponde a uma forma de organização típica do Estado de Bem-estar Social. Para eles, lata de lixo.

Uma nota. Parece incrível, mas um social-democrata chamou a si a missão de destruir a social-democracia!

Mas FHC não conseguiu completar sua obra. Aliás, para o bem do Brasil e dos muitos brasileiros que dependem de serviços públicos e de legislação que os proteja do mercado voraz e da economia que os exclui,

Parece que a missão de FHC foi retomada nestes tempos bicudos de bolsonarismo. A idéia é implantar a chamada administração gerencial, que pressupõe destruir as carreiras públicas sob o argumento de redução de custos e mais eficiência. O plano é simples: a Administração Pública paulatinamente vai substituindo servidores públicos por empregados (mais adiante, “pejotizados”) fornecidos por terceirizadas.

O social-democrata arrependido falhou porque encontrou pela frente a Constituição Federal de 88, ainda que tenha feito suas reformas, além de resistência dos movimentos sociais, dos sindicatos e da esquerda.

Pretendem avançar? Criar um modelo melhor que o weberiano? Não! Sob o véu de uma suposta modernização, o propósito é refluir para algo semelhante ao patriciado burocrático. Ora, a escolha das pessoas contratadas pelas terceirizadas serão definidas dentro dos gabinetes dos gestores públicos, às escondidas, de acordo com preferências pessoais ou político-eleitorais. Os “patrícios” e cabos eleitorais serão contratados para as melhores posições! Os demais serão pessimamente remunerados e sem qualquer autonomia. Será um modelo autoritário e vai enterrar a chamada impessoalidade. Duvido que seja eficiente como pregam seus defensores.

Parece que a ojeriza pelo vermelho já tem ecos em setores do Poder Judiciário.

Conforme notícia veiculada na mídia virtual (ver aqui), a 12ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, pela decisão monocrática do desembargador Souza Nery, cassou liminar concedida em primeiro grau e permitiu que a Administração Municipal de São Bernardo do Campo pinte as ciclovias da cidade na cor azul, em substituição ao vermelho.

Já em 2014, a cor de ciclovias foi politizada e, depois, judicializada. À época, deu-se o manuseio de uma representação contra Fernando Haddad por propaganda partidária irregular, acusando o então Prefeito de São Paulo de ter demarcando o espaço exclusivo dos ciclistas na cor do seu partido político, o PT, para favorecê-lo eleitoralmente. A Justiça Eleitoral decidiu pela improcedência do pedido por entender que a cor vermelha em ciclovias é padrão obrigatório estabelecido pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran).

Notadamente, as ciclovias são segregadas das vias, de modo que necessária a pintura horizontal de cor vermelha para chamar a atenção dos motoristas. Nos cruzamentos, a pintura em destaque é fundamental para sinalizar que naquele ponto transitam bicicletas e que elas tem preferência sobre os automóveis. Trata-se de responsabilidade com a mobilidade urbana.

Na verdade, a cor vermelha para a demarcação de ciclovias ou ciclofaixas é padrão adotado internacionalmente e foi aprovada para aplicação no Brasil pela Resolução nº 236 do Contran, com base no art. 336, do Código de Trânsito Brasileiro. Trata-se, portanto, de escolha técnica e não político-partidária!

Como a cor vermelha é comumente associada a partidos de esquerda e propostas de cunho social, passou a ser alvo de gestões conservadoras, como na capital paulista, que substitui a pintura vermelha em toda extensão da ciclovia por duas linhas estreitas, uma branca e outra e vermelha.

O próximo passo: excluir o vermelho do espectro eletromagnético!

No imaginário desse pessoal, o banimento do vermelho simboliza a destruição do Estado de Bem-estar Social!

P.S.: Será que o emprego da cor vermelha nos semáforos e nas placas de sinalização de trânsito também é vista como propaganda partidária?

Heráclito, pintura de Hendrick ter Brugghen

No artigo transcrito mais adiante, o economista e professor MÁRCIO POCHMANN analisa a desregulamentação das relações entre Capital e Trabalho e o esfacelamento daquilo que denomina de “sociedade salarial”, isso por conta das três últimas grandes crises econômicas.

O texto me deixou inquieto. Surgiram indagações que exigem um debate dedicado. Trago algumas aqui, numa sequência um tanto quanto caótica e espontânea, fui agrupando na medida em que foram surgindo:

1. Será que o encolhimento das relações assalariadas abre espaço para uma nova formação social e econômica que supere o Capitalismo ou, ao contrário, ruma-se à barbárie (ou a algo não tão drástico, um Capitalismo “à moda antiga”, livre das amarras do Estado de Bem-estar Social)?

2. A saída correta, sob uma perspectiva de esquerda e grosso modo, é (i) tão somente lutar pela “restauração” da sociedade assalariada (reerguer a “Republica Sindical”, o Estado de Bem-estar Social, desfazer a reforma trabalhista, etc.), a fim de evitar a barbárie ou (ii) ainda que se lute contra a desregulamentação das relações entre Trabalho e Capital, impõe-se o apoio a eventuais novas relações de produção (agora não assalariadas)?

3. Mais: com a crise da sociedade salarial, é possível identificar o surgimento de novas “forças produtivas” ou, em sentido diverso, a desregulamentação em curso só cria assalariados sem salários (os tais “empreendedores” sem capital, que prestam serviços terceirizados – o fenômeno “uberização”, o que na verdade é uma forma de o Capital precarizar ou até encobrir relações que são, pela sua natureza, assalariadas (subordinação, onerosidade, não eventualidade, sob o ponto de vista do formalismo jurídico e superestrutural, e de produção de mais valia, sob o ponto de vista econômico e estrutural etc)?

4. A História acabou, no sentido proclamado Hegel e Fukuyama? O Capitalismo é uma formação social e econômica ad aeternum? Vamos, a partir daqui, percorre sempre o mesmo rio? Heráclito foi derrotado em definitivo por Parmênides?

Trago estas questões para o debate. Não tenho as respostas. Melhor, até as tenho, mas ainda são precárias. Alias, as perguntas são precárias.

Agora, ao texto do POCHMANN, que segue abaixo.

Recessão, neoliberalismo e abandono da sociedade salarial

A geração líquida de 644 mil novos empregos assalariados formais em 2019 foi um alento frente ao mar do desemprego e subocupação que transborda no país desde 2015. Ao mesmo tempo confirma o sentido geral pelo qual o mundo do trabalho encontra-se submetido pelo contexto mais geral imposto pela recessão econômica associada ao processo de desregulamentação das relações entre o capital e o trabalho.

Isso porque é com a recessão econômica que o mundo do trabalho tem sido exposto mais rápida e profundamente a mudanças que alteram a trajetória do seu funcionamento. Das três maiores recessões que contaminaram o Brasil desde 1980, a que ocorreu entre 2015 e 2016 foi a mais radical devido aos impactos diretos e indiretos das reformas desregulatórias do trabalho adotadas nos governos Temer e Bolsonaro.

Ao se defrontar com período de tempo mais longo, como o das últimas quatro décadas, pode-se observar como o mundo do trabalho tem seguido trajetória inversa daquela instalada desde a década de 1880, quando o país rompeu com quase quatro séculos de escravidão. Ou seja, o abandonado das tendências históricas de assalariamento dos postos de trabalho e de formalização do emprego salarial, pelo menos desde a década de 1920, com a implantação da previdência social (Lei Elói Chaves, em 1923) e do trabalho formal (Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943).

Isso parece inegável quando analisado com rigor o conjunto de dados do mundo do trabalho divulgados pelo IBGE e Ministério da Economia (Rais e Caged). Na comparação das três últimas recessões, por exemplo, a mais recente tem sido a que mais tornou evidente a mudança estrutural sem paralelo nas treze últimas décadas.

Nas recessões experimentadas em 1981-1983 e em 1990-1992, o mundo do trabalho foi significativamente abalado, porém sem convergência entre as trajetórias do assalariamento e da formalização. Apesar do crescimento do desemprego e do desassalariamento na primeira recessão, logo no início da década de 1980, o Brasil conseguiu retornar o estoque do emprego assalariado, mas sem voltar imediatamente ao nível de formalização durante a recuperação econômica.

Em 1985, por exemplo, cinco anos após o começo da recessão, o emprego assalariado era 31% superior ao ano base de 1980, anterior ao início da recessão, enquanto a formalização havia crescido 13,5% no mesmo período de tempo. Com isso, a taxa de assalariamento (relação dos empregos assalariados no total das ocupações) entre os anos de 1980 e 1985 subiu 6,2%, enquanto a formalização dos empregos assalariados caiu 13,2% no mesmo período de tempo.

Na segunda recessão, logo no início da década de 1990, o desemprego e o desassalariamento reapareceram fortemente. Com a recuperação econômica, o emprego assalariado e sua formalização voltaram a apresentar trajetórias distintas. Apesar do estoque de emprego assalariado em 1994 ter sido 2% superior ao ano base de 1989 (imediatamente anterior ao início da recessão) e o assalariamento formal 4,6% maior, a taxa de assalariamento caiu 11,2% e a formalização dos empregos assalariados subiu 2,7% entre 1990 e 1994.

Por fim, na terceira recessão ocorrida no início da segunda metade de década de 2010, o assalariamento e a formalização dos empregos registraram trajetórias de retração convergentes. No ano de 2019, por exemplo, cinco anos depois do início da recessão, o estoque dos empregos assalariados encontrava-se 2,6% inferior e o emprego formal 4,1% menor ao de 2014, o que significou a queda em 2,7% na taxa de assalariamento e a regressão em 2,6% na formalização dos empregos assalariados entre os anos de 2014 e 2019.

A combinação da recessão econômica com aplicação do receituário neoliberal para desregulamentar as relações entre o capital e o trabalho tem excluído fortemente o conjunto dos trabalhadores do sistema de assalariamento em curso desde 1889. Também termina por alijá-los dos mecanismos existentes de garantia dos direitos à proteção e à promoção social e trabalhista instalados progressivamente desde a década de 1920 no Brasil.

A sociedade salarial sonhada por tantos progressistas e posta em prática com as lutas desde os abolicionistas na década de 1880 e dos tenentistas nos anos de 1920 sofreu forte impacto nas três últimas recessões econômicas. Mas tem sido os anos após 2014 – com recessão sem recuperação econômica sustentada, associada ao programa de desregulamentação do trabalho dos governos Temer e Bolsonaro –, a principal imposição destrutiva ao estatuto do trabalho no Brasil.

Márcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas, e presidente da Fundação Perseu Abramo

*Artigo publicado na Rede Brasil Atual

Nas redes sociais, o respeitável juiz Luis Carlos Valois disse que sua mãe, presa duas vezes pelo COI-CODI do Rio, pouco se lixou para o regime militar e, em pleno AI-5, colocou o nome do filho de Luiz Carlos em homenagem a Prestes (aliás, cuja Coluna Invicta partiu aqui da Velha São Luiz Gonzaga, terra que viu nascer Sepé Tiaraju).

O comentário de Valois me tocou. Trouxe amorosa lembrança da minha falecida mãe, a Dona Milda, que também foi muito corajosa. Em plena ditadura militar, Milda reverenciou Brizola, colocando o “Leonel” no meu prenome composto (Charles Leonel).

Leonel Brizola, eleito governador do Rio Grande do Sul em 1958, liderou em 1961 a Campanha da Legalidade. Contextualizando, em AGO1961 Jânio Quadros renunciou à presidência e os militares, golpistas, tentaram impedir que Goulart o sucedesse, sob a justificativa de combater o perigo do comunismo. A Campanha da Legalidade garantiu que se cumprisse a Constituição Federal (pelo menos até 1964, quando os golpistas saíram vitoriosos)!

Ao falar de Brizola, a quem sempre admirei pelos discursos em favor da reforma agrária, distribuição de renda e educação, lembrei que foi o ex-governador dos gaúchos e dos cariocas que conferiu a Moreira Franco o apelido de gato angorá. Aliás, a alcunha ficou famosa no Brasil porque foi manchete nacional, já que gato angorá era o codinome de Moreira nas planilhas de propina da Odebrecht, segundo a Polícia Federal.

Mas o que muitos perguntam é a razão do velacho dado por Brizola ao Moreira. Simples: pelo cabelo branco e por estar de “colo em colo” dos outros políticos, atuando como um oportunista.

De fato, Moreira Franco, considerado um período mais recente, aderiu aos governos FHC e Lula, que tinham propostas diferentes na economia e, principalmente, no campo social. Também foi ministro da presidenta Dilma, a quem traiu para se deitar no colo do governo de Temer.

Aliás, não há realpolitik ou governabilidade que justifique (explica, mas não justifica) o gato angorá no colo dos governos Lula e Dilma. Espero que o episódio se preste como uma normativa do que não se deve fazer em um governo do campo popular-progressista, em especial no que se refere à politica de alianças (que deve ter os seu limites).

A professa Sandra Vidal Nogueira, que sempre traz para o campo do debate temas relevantes – e que deveriam estar nas nossas discussões e preocupações diárias -, indagou na rede social (Facebook) o seguinte:

– O PT é liberal?

Bom, não tenho procuração desse enorme e histórico sujeito coletivo para defendê-lo, sequer sou dirigente partidário. Assim, falo apenas com o olhar de um militante.

Respondo aqui porque no Face o espaço é reduzido, a resposta fica “escondida”, caso ela exija algumas linhas a mais.

A questão posta na reflexão da Sandra, a partir da leitura de uma matéria veicula em revista eletrônica (ver aqui): se o PT se assume liberal – um liberalismo com maquiagem humanista – e, até por isso, não resguarda a social-democracia.

Começo dizendo que na entrevista do Haddad, concedida a um programa de televisão, que serviu de fonte para matéria vinculada pela Exame, da Abril, deve ser considerado o contexto típico de campanha eleitoral. Tenho para mim que o Haddad não queria dar margem à classificação imposta naquele momento de que representava uma proposta “sectária”, dentro de uma acusação mais ampla de fomentar a “polarização” (mesma imputação que pesa sobre o discurso do Lula nestes últimos dias, mais precisamente em relação às suas críticas ao governo Bolsonaro). Foi uma tática eleitoral. Não a vejo com simpatia, mas compreendo o contexto, já concorri a cargo eletivo pelo PT (orgulhosamente vice na chapa encabeçada por Rodrigo Veleda) e sei das armadilhas que são distribuídas pelo caminho.

Pelo que o Haddad disse no decorrer de toda a campanha eleitoral e ao depois, pelo programa de governo que sustentou, pelas políticas públicas dos governos Lula/Dilma (e aqui no sul, Olívio/Tarso), olhando esse acúmulo, concluo que o PT, mais precisamente nesses governos em que o partido participou, não aderiu ao liberalismo econômico, não agiu como um detrator do Estado de Bem-estar Social.  Estas experiências tiveram suas limitações e contradições, por óbvio, mas não colocaram em prática, via de regra, medidas do receituário neoliberal no sentido de desarticular o Estado de Bem-estar Social preconizado na Constituição de 88, ao contrário (é possível abrir divergência, por exemplo, na opção por determinados ministros da economia e suas ações nos governos Lula e Dilma, das concessões feitas em nome da governabilidade, etc., mas isso não significa dizer que se aderiu ao neoliberalismo). Vou explicar o meu entendimento, ainda que de forma bem sintética, para não tisnar o objetivo de uma postagem em blog.

A esquerda libertária e democrática, aquela que rejeita, por exemplo,  as experiências totalitárias de um Stalin, também se alimenta dos valores do iluminismo, portanto do liberalismo político. Quem defende a 1ª geração de direitos humanos (direitos civis e políticos) tem identificação, ainda que de forma relativa, com o liberalismo político.

Essa identificação é “relativa” porque o sentimento do pós guerra, as lutas políticas e sociais (e, inclusive, as experiências comunistas) impuseram ao Estado liberal – “sociedade política” construída pari passu da formação social e econômica capitalista – uma nova geração de direitos humanos (direitos fundamentais: sociais, econômicos e culturais), que acabaram dando azo, grosso modo, ao Estado de Bem-estar Social (e, na sua verbalização teórica e política, temos a social-democracia, agora descolada da sua origem “revolucionária”).  Mais adiante, ainda foi firmada a 3ª geração de direitos humanos (direitos difusos e coletivos, direitos à comunicação, isso no plano interno, direito a autodeterminação dos povos, à paz, etc, no plano externo).

O liberalismo econômico, por outro lado, sempre foi refratário aos direitos humanos de 2ª e 3º geração, exatamente porque são direitos “a favor do Estado”, ou seja, o Estado tem de se fortalecer (estrutura e disponibilidade fiscal) para garanti-los. Um adendo para bem esclarecer: os direitos humanos de 1ª geração são direitos do indivíduo “contra o Estado”, ou seja, o Estado tem de se retrair para não ferir e garantir as liberdades do indivíduo.

A social-democracia européia e o keynesianismo norte-americano, sem romper com o liberalismo político e sem revolucionar/superar a formação social e econômica capitalista, confrontaram o liberalismo econômico clássico, fortalecendo o Estado como agente indutor da economia e do bem-estar social (deu-se o fortalecimento, não sem ressalvas e equívocos, da 2ª e da 3ª gerações de direitos humanos).

O neoliberalismo, gestado em várias partes do mundo, como por exemplo, na “escola de Chicago”, é uma reação à social-democracia européia e o keynesianismo, uma retomado do liberalismo econômico clássico, que não quer um Estado garantidor da 2ª e 3ª gerações de direitos humanos.

Essa doutrina neoliberal, por tática, se uniu politicamente a um tipo de conservadorismo que sequer tolera o liberalismo político (a 1ª geração de direitos humanos). Tal união vai gestando pelo mundo uma espécie de neofascimo, um Estado mínimo na economia, mas máximo no Direito Penal, na repressão de costumes e de manifestações reivindicatórias, impermeável à participação popular, comandado à distância pela banca (capital financeiro) e, com menor relevância, pelo capital industrial, com administração exercida por “milicianos”, militares, políticos medíocres e alguns religiosos fanáticos.

Sempre desejei um PT que lutasse pela superação da formação social e econômica capitalista, que se mantém pela exploração do trabalho (mais-valia) e pela divisão em classes. Uma utopia, um “não-lugar”. O capitalismo não foi o primeiro modo de produção adotado pelos homens, quiçá não será o último. Como não acredito em “fim da História”, penso que a sociedade pode organizar a produção e a distribuição da riqueza de forma mais solidária (como também tem capacidade dar curso à barbárie). Participar da política com autonomia. Também sustento que governos comprometidos com o desenvolvimento humano têm de criar alternativas para uma economia solidária e para a participação direta das pessoas na política, ainda que preservando a representação (democracia participativa). A isso chamo de socialismo (já que tem de ter um “ismo”, uma classificação).

No entanto, a luta atual da esquerda democrática é de “manutenção”, consiste na defesa do Estado de Bem-estar Social e de TODAS as gerações de direitos humanos, que correm sério risco frente à investida neoliberal e neoconservadora (direitos trabalhistas e previdenciários, por exemplo, já foram restringidos)! E essa luta não é só da esquerda, mas de todos os democratas, incluindo aí os liberais, não aqueles alinhados com o liberalismo econômico, mas os que professam de forma autêntica o liberalismo político.

Então, o PT é liberal e não resguarda o Estado de Bem-estar Social?  O PT é plural, abriga tribos variadas. Dentre outros, o PT tem socialistas (que lutam pela “utopia”, por um “passo a frente” no processo civilizatório, pela superação do capitalismo, pela supremacia do “mundo do trabalho”) e tem sociais-democratas (que lutam pelas três gerações de direitos humanos, ainda que nos marcos de capitalismo restringido pela atuação do Estado). E quem são os sociais-democratas ? Ora, são liberais “de esquerda”, vinculados ao iluminismo e ao liberalismo político e que defendem o Estado de Bem-estar Social, que se identificam com as gerações de direitos humanos!

Todo partido social-democrata e socialista libertário tem dentro de si um tanto de liberalismo político! Assim, o PT também tem, na sua receita, uma pitada de liberalismo, no sentido que acima falei.

O que o PT não aceita – porque ai deixa de ser PT – é o neoliberalismo, a desconstrução do Estado de Bem-estar Social, a supressão das diversas gerações de direitos humanos, do esvaziamento da democracia (e da esfera pública).

É uma resposta ao questionamento da Sandra. Claro que não é a única. E é bom ouvir ou ler outras respostas.

(Sem correção. Quem ler, obséquio fazer as correções necessárias. Grato)

As Sereias e Ulisses, de William Etty
(c) Manchester City Galleries; Supplied by The Public Catalogue Foundation

Em setembro, foi noticiado de que o governo de Eduardo Leite estaria disposto a franquear ao parlamentares gaúchos, via emendas, a importância de R$ 55 milhões (ver aqui). O tema é revivido agora em novembro, já que o Governador apresentou medidas de supressão de direitos históricos do magistério, cuja reação justa é a deflagração de movimento paredista (ver aqui). Tais medidas, para serem aprovadas, dependem dos votos dos deputados.

Narra a mitologia grega que seres espetaculares, chamados de sereias, habitantes do Mar Tirreno, nas proximidades da ilha de Capri, seduziam marinheiros com seu canto. O encantamento da voz das sereias custava o naufrágio e até a morte dos paspalhos.

Na Odisseia, de Homero, o personagem Ulisses escapa à sedução das sereias valendo-se de uma estratégia singela: é amarrado pelos seus companheiros de nau, que também se salvam ao taparam os seus próprios ouvidos.

No caso das emendas parlamentares, a esquerda já foi Ulisses, já agiu como seus tripulantes. Hoje, não tem amarras, nem faz ouvidos moucos!

Não ignoro que o emprego das emendas parlamentares já foi “normalizado”, integra o cotidiano dos deputados de todo o espectro político ideológico. Como se diz: – Não é de direita, nem de esquerda.

Foi-se o tempo em que defender o fim das emendas, como no pós escândalo dos “anões do orçamento” (relembre aqui), era bandeira da militância progressista e uma valor republicano, necessário à separação e independência entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, dentro dos marcos do presidencialismo.  Hoje, compomos a platéia que aplaude as obras inauguradas com “o dinheiro do seu deputado fulano de tal”.

Como refere com propriedade o professor Renato Botteselle, modificamos o Brasil e o Brasil nos modificou. Só que, nesse ponto específico das emendas parlamentares, a modificação não foi um passo para frente, não se tratou de um aprimoramento.   

Sei bem que os deputados do campo progressista não irão votar contra o mundo do trabalho por conta das emendas. Inclusive, é elogiável a proposta de cerca de 20 deputados (PT, PDT, PSOL e MDB), sugerindo que esses valores sejam destinados à Consulta Popular (ver aqui). Já é algo.

Mas a questão principal não é essa, não se questiona a boa-fé dos parlamentares que se utilizam das emendas. O ponto é o equívoco de  legitimar, ao longo dos anos, o “canto de sereia” que vai seduzir os outros marinheiros, maioria na Assembleia Legislativa.  

Sobre emendas parlamentares, já tratei delas duas vezes nesse bloguinho (aqui e aqui) e não vou me alongar mais.

O que quero destacar aqui é o movimento malandro do governador, bem distante da nova política prometida. Para aprovar as medidas de restrição de direitos que apresentou ao Parlamento, antecipadamente ofereceu o seu canto de sereia. Nesses tempos bicudos, com R$ 55 milhões, nem Ulisses resistiria!

Lula carregado por apoiadores em São Bernardo. SEBASTIAO MOREIRA (EFE)

(…) aquela aparente desordem que é, na verdade, o mais alto grau de ordem burguesa.” (Dostoievski)

Na quinta passada (07NOV), como é de conhecimento geral, o Supremo Tribunal Federal julgou as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) apresentadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo PCdoB e pelo antigo PEN (atual Patriota), certificando a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, que prevê que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Na verdade, o STF retomou o entendimento anterior a 2016, afirmando que a pena não pode ser executada antecipadamente, mas somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

O observador poderá concluir pela manifestação de uma constrangedora desordem no sistema de justiça, mais precisamente na sua cúpula. Ora, em 2016 o STF havia mudado sua orientação história e decidido pela possibilidade da execução automática da pena passada o segundo grau de jurisdição, situação que autorizou a prisão de Lula. Agora, recupera a posição antiga. Em pouco mais de três anos, duas reviravoltas. E o texto constitucional não se alterou!

Desordem? Falta de alinho do sistema de justiça, que agora, com a nova decisão, passa a confrontar o status quo, já que libertou Lula?

Aparências enganam, diz a conversa de rua. A aparência do fenômeno não revela a sua essência, ensinam as ciências sociais.

Essa aparente desordem em relação à interpretação do inc. LVII do art. 5º, da CF, reflete a própria ordem ou reordenamento da formação social econômica capitalista tupiniquim na sua relação com a superestrutura jurídica. O vai e vem hermenêutico resulta de uma tensão que o sistema de justiça sofre, num primeiro plano, do sistema econômico e, secundariamente, mas também com força, do sistema político e do sistema de informação (tanto das redes sociais, vide Vaza Jato, como da grande mídia empresarial).

O que se percebe (no plano político) é uma crise dentro do atual coalização hegemônica formada por neoliberais, conservadores, religiosos, rentistas, militares e lavajatistas. As insanidades do governo Bolsonaro,  as revelações da Vaza Jato, os pífios resultados econômicos de Guedes, desemprego, congelamento de salário, redução de prestação de serviços públicos na saúde, educação e assistência social, são ingredientes ativos para movimentar a balança da luta pela hegemonia. Mas atrás de tudo isso se encontra os donos da capital financeiro e industrial. Podem até dar um passo atrás, mas são os “pesos pesados”, os donos do tabuleiro.

Para entender o momento, útil uma frase de Dostoievski, referida por Marshall Berman em sua obra Tudo que é solido desmancha no ar (ver aqui), Companhia das Letras, 1986:

“[…] aquela aparente desordem que é, na verdade, o mais alto grau de ordem burguesa.” (Dostoievski em Londres, 1862)

Há um recuo, não se discute. Mas a ordem burguesa certamente vai retomar, com toda força, sua pressão contra o STF. A fala do min. Dias Toffoli, em seu voto de desempate, sinalizando que o Congresso pode autorizar a prisão automática depois de decisão de 2ª instância, é um sintoma de futura capitulação, a galinha tentando negociar com a raposa.

Os donos do capital financeiro e industrial pouco se importam com a garantia fundamental contida no inc. LVII do art. 5º, da CF – a presunção de inocência e se é cláusula pétrea. O que interessa para essa gente, nesse passo, é impedir Lula ou a esquerda de se aproximar do poder, o que colocaria em risco o projeto confiado a Guedes de destruir o Estado de Bem-estar Social e desregular ao máximo as relações entre capital e trabalho, bóia de salvação, segundo eles, para o Capitalismo superar a sua última crise cíclica.

Aliás, para os donos do Capital a própria CF/88 é um obstáculo a ser superado, o que se faz com mais pressão sobre o STF (no âmbito hermenêutico) e sobre o Congresso Nacional (para emendar a CF, ainda que se avance sobre cláusulas pétreas).

Por isso, Lula livre é uma ameaça, porque pode ser a chave para reagrupar os movimentos sociais e colocar o povo nas ruas. E a ordem capitalista, a depender de seus operadores, vai provocar mais desordem no sistema de justiça (e no sistema político), podendo até dialogar com o autoritarismo.

P.S.: não é de se surpreender se a ordem burguesa “vomitar” Bolsonaro; se for necessário e aparecer uma “alternativa”, farão isso.

A direita brasileira vinculada ao clã Bolsonaro tem um visão curiosa, para não dizer distorcida, da democracia. Sempre que criticados, sinalizam o emprego de métodos autoritários, ainda que anunciem que o objetivo é salvaguardar a democracia.

Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do presidente Jair Bolsonaro, outro dia defendeu um novo AI-5, a ser posto em prática caso a população vá às ruas protestar contra o atual modelo econômico e por melhores condições de vida, tal como ocorreu no Chile.

O mais desconcertante é que o argumento trazido pelo “zero 3”: a reedição do AI-5 evitaria a “quebra da democracia”. Uma medida preventiva, portanto, para socorrer o Estado Democrático de Direito da agitação popular. Um kratos sem demos.

Duvido que se possa citar uma obra importante de Ciência Política ou da Teoria Geral do Estado que corrobore o fechamento da Corte Suprema ou do Parlamento como medida legítima para preservar a democracia.

Embora muitos setores da sociedade tenham repudiado o discurso de Eduardo Bolsonaro, não houve uma resposta mais forte de algumas instituições.

Parece que o passar do tempo vai esmaecendo os fatos históricos, colocando para baixo do tapete toda a sujeira do regime de 64.

Esses acontecimentos trágicos exigem revisitas permanentes, um exercício de revigoramento da memória nacional.  

Nunca é demais relembrar que o AI-5, lançado em 13DEZ1968 pelo General Costa e Silva, é o mais funesto dos atos institucionais baixados pelo regime ditatorial instalado em 1964. Vigorou até dezembro de 1978 e se prestou a dar aspecto de legalidade para uma série de ações arbitrárias de efeitos duradouros.

O AI-5 “legalizou” o momento mais sombrio daquela ditadura, funcionando como um mecanismo de intimidação pelo medo. Autorizados pelo AI-5, as forças de segurança do governo tiveram carta branca para perseguir e reprimir quem se opusesse ao governo. Nas sobras, os agentes do governo intensificam os sequestros, torturas e assassinatos dos adversários políticos.

Um dos motivos alegados para a promulgação do AI-5, veja só, foi o pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, na Câmara dos Deputados, em 03SET1968, lançando um apelo para que o povo não participasse dos desfiles militares do dia 7SET e para que as moças se recusassem a sair com oficiais.

Na verdade, o AI-5 foi uma resposta à Passeata dos Cem Mil, que ocorreu em 26JUN1968 na cidade do Rio de Janeiro, manifestação popular contra a ditadura militar, organizada pelo movimento estudantil.

Passeata dos Cem Mil

Por conta disso, o governo militar solicitou, então, a cassação do deputado Márcio Moreira Alves e, ainda, do deputado Hermano Alves, que escrevia artigos contra o regime.

Todavia, o Congresso Nacional não autorizou o processo para cassação dos deputados. Como resposta, no dia 13DEZ1968 foi baixado o AI-5, autorizando o presidente da República, sem apreciação judicial, a decretar o recesso do Congresso Nacional, intervir nos estados e municípios, cassar mandatos parlamentares, suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão, decretar o confisco de bens considerados ilícitos e suspender a garantia do habeas-corpus.

Naquele mês de DEZ1968, com base no AI-5, 11 deputados federais foram cassados. A lista de cassações aumentou no mês de JAN1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal.

Os anos seguintes foram pavorosos!

Por isso, qualquer menção de apoio ou reedição do AI-5 é uma ofensa à democracia e aos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição Federal e deveria ser imediatamente repudiada por cada um dos poderes, em especial o Parlamento e Judiciário, que foram diretamente violados pelo AI-5.

Se o Congresso Nacional e a cúpula do Poder Judiciário manterem-se inertes diante dos discursos autoritários do clã Bolsonaro, dia desses serão fechados por um cabo e um soldado.

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