
Leio agora no Valor Econômico (ver aqui) que um lote de 5 milhões de doses da vacina de imunização da Covid-1,9 fabricada pela Bharat Biontech, da Índia, ao preço de R$ 800 as duas doses, está sendo comprada por consumidores finais aqui Brasil.
Na lista de quem encomendou, aparecem juízes federais do Rio Grande do Sul (sirvam nossa façanhas de modelo a toda Terra).
Dia desses, o presidente Bolsonaro já havia aprovado a comercialização de 33 milhões de doses da AstraZeneca, que também poderão ser utilizadas fora do SUS, ainda que uma fração. Assim, os ricos se safam com a ciência, aos pobres sobra o curandeirismo oficial da cloroquina!
O viés que exploro aqui não é de ordem legal, mas moral. Diante da dificuldade de o SUS adquirir os imunizantes suficientes para atender a demanda da população brasileira, a grande maioria pobre, é moralmente admissível que essa “mercadoria” escassa (não tem produção suficiente, pelo menos no momento), seja comercializada diretamente ao “consumidor” abastado, ainda que não integre nenhum grupo prioritário? A conduta não passa a ser imoral na medida em que viola a ordem de grupos prioritários definidos no plano nacional de operacionalização da vacina contra a Covid-19?
Para responder essa indagação “prática”, o filósofo Immanuel Kant recomendaria engendrar uma lei que tivesse validade universal. Como? Estabelecendo uma máxima – o que fazer? – e depois a lei moral, produto da contradição expressa na máxima quando sai do particular para o universal. Com a lei, seria possível estabelecer a ação/conduta moral.
Assim, diante da elaboração da máxima “posso matar outro homem?”, aparece a contradição “nenhum homem vivente, por mais que mate outro homem, aceita ser morto”. Ou seja, se não aprovo que me matem, não posso sair por ai matando os outros, ainda que isso seja do meu interesse particular! Eis a lei!
Trazendo essa esquematização para o caso aqui discutido, teríamos a seguinte máxima: se tenho dinheiro para comprar o imunizante escasso, posso desrespeitar a ordem de grupos prioritários, por ser esse o meu interesse particular? Ora, se não admito que outro afaste o critério de prioridade de grupo porque isso me prejudicaria (caso integrasse grupo de risco), não devo, sob o ponto de vista moral, beneficiar-me do expediente de furar a fila só porque tenho dinheiro para tanto!
Claro, como esclarece Jürgen Habermas, qualquer reflexão mais profunda sobre o agir moral exige a participação na discussão de todas as partes concernidas, o que não é possível aqui nesse espaço.
No entanto, posso assumir o risco de dizer que, para uma parcela da pequena burguesia (e da burguesia) brasileira, não há qualquer problema moral nesse comportamento de desconstruir o critério da priorização de grupos na ação de imunização para a Covid-19.
E também não estou surpreso. Por vários motivos. Vou citar os dois mais perceptíveis:
(i) O governo brasileiro, na figura de seu presidente negacionista e obscurantista, seguidamente emite sinais claros que a melhor diretriz moral para a pandemia é “cada um por si”, até porque os cidadãos de bem e de bens tem seus méritos, vão sobreviver. Sinalo que a aplicação do plano nacional de operacionalização da vacina contra a Covid-19, contendo critérios de priorização por grupos, de certa forma foi uma imposição do STF (além de ser uma construção intelectual e técnica de servidores público da área da saúde e de representações da sociedade civil/grupos profissionais). Caso dependesse exclusivamente do Bolsonaro, talvez ainda estivesse engavetado.
(ii) Na formação social e econômica capitalista, quando o Estado é afastado da regulação, omitindo-se na fixação de regras claras de proteção aos hipossuficientes e cedendo espaço para o “mercado”, acaba por prevalecer o laissez faire, laissez aller, laissez passer. Nesse ultraliberalismo, o interesse do “mais apto” (de quem tem dinheiro, poder econômico) se impõe. Prevalece o utilitarismo, concepção segundo a qual a regra de conduta tem validade se é útil e dá prazer ao indivíduo (e só por extensão ou mediatamente vai atingir a coletividade).
A falta de ação regulamentar do governo é uma das fontes do caos que se formou, inclusive no campo moral. Inaugura-se, assim, uma barbárie institucionalizada, que vai sendo naturalizada pelo poder político e pelo poder econômico.
P.S.: os canalhas golpearam a Dilma com discurso moralista. Recentemente Dilma respondeu com conduta fundamentada em regra moral universal, ao não aceitar a violação da ordem de grupos prioritários!