
– “(…) Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: Procuro Deus! Procuro Deus! – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma enorme gargalhada… Para onde foi Deus?…já lhes direi! Nós o matamos – você e eu. Somos todos assassinos! Mas como fizemos isso? … Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus?… Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”
– Nietzsche, Gaia Ciência, aforismo 125
Na transcrição acima, que serviu de inspiração para o título desta crônica, Nietzsche conta a estória de um insensato que sai em praça pública procurando por Deus para, diante da indiferença dos questionados, declará-lo morto.
Como se sabe, Nietzsche estava falando do fim de uma época onde tudo era explicado a partir da revelação divina. Era o estertor do imaginário medieval e o crepúsculo do pensamento moderno, em que o Deus judaico-cristão cedia espaço para a ciência.
Participo de um grupo em rede social formado por ateístas e agnósticos, atendendo a convite de um de seus membros.
Fui apartado por um terceiro, que acompanha aquele grupo, mas não é ateu. Indagou sobre como “perdi a alma”, como ocorreu essa “reconversão”, uma espécie de epifania reversa, mediante a qual passei a “crer” na não existência de um criador de tudo e de todos.
Aqui respondo, mas não como um desagravo ou justificativa especificamente endereçada. Minha manifestação, em sentido diverso, é pelo apego ao diálogo com todos aqueles que queiram tratar do tema, ateístas, agnósticos ou teístas.
Tenho a dizer que o meu ateísmo não é um “ato de fé”, uma crença ou uma escolha, muito menos um movimento contra à fé religiosa. Não tenho a pretensão de matar o Deus de ninguém! Na verdade, trata-se de uma compreensão de mundo, feita a partir de uma perspectiva filosófica materialista, e, de certo modo, lastreada no acúmulo de conhecimento produzido pelo avanço da ciência.
Aqui no Bilhetes vou abordar o tema no campo filosófico, falando do materialismo. De forma breve e, por isso, superficial, como exige uma crônica.
Início dizendo que não há como tratar do materialismo sem dizer da sua contraface, o idealismo.
Grosso modo, a diferença clássica entre materialismo e idealismo encontra-se na ordem que se dá o surgimento do material e do “imaterial”.
Para o idealismo, a ideia é a primeira causa de tudo o que existe, de tal sorte que veio antes e, assim, produziu a matéria. A matéria é um acidente ou uma corporificação do espírito. Segundo esse entendimento, o pensamento e as ideias são os responsáveis pela existência de tudo o que foi elaborado pela humanidade, independentemente da realidade material.
Para o materialismo, primeiro surge a matéria, depois a ideia, esta como um atributo daquela. Todo o existente está na matéria e na natureza. O próprio pensamento é o resultado da organização da matéria. A concepção materialista reconstrói o passado e projeta o porvir pela materialidade de fatos e efeitos.
Na visão materialista, todo o conhecimento produzido e acumulado pela humanidade só foi possível a partir das atividades práticas (primeiro a prática, depois a teoria), decorrentes das necessidades de organização da própria existência.
No idealismo prevalece o plano ideal, formado por entidades metafísicas, transcendentes e imateriais, quais sejam, as ideais, conceitos e formas eternas e imutáveis, que controlam o plano material, este último sendo apenas a cópia imperfeita daquele. Há uma arché, um princípio que deve estar em todos os momentos da existência de tudo no mundo, no começo até o fim, principio pelo qual tudo vem a ser.
Já no materialismo, em sentido contrário, a primazia é da materialidade, sem a qual não haveria base para as ideias, as ideologias, o conhecimento, a tecnologia, etc.
Nessa linha de entendimento, umas das conclusões possíveis é que a “consciência” (e a inconsciência), as ideias, a ideologia, o espírito (espírito em seu sentido Filosófico), a cultura, as leis, o conhecimento acumulado, ou seja, a “superestrutura”, não se trata de um mero reflexo da matéria, mas de um atributo seu.
No entanto, a materialidade do mundo não se resume à matéria, ou seja, a tudo aquilo que tem massa ou que é corpuscular (aliás, a matéria exibe propriedades tanto de partícula como de onda), possui volume e ocupa lugar no espaço (e no tempo). Engloba a energia (que não é somente é a capacidade de causar a mudança ou fazer o trabalho, tratando-se de um atributo da matéria; de acordo com Einstein, matéria e energia são equivalentes, uma se transformando na outra), energia negra, etc. e o próprio espaço-tempo.
Dito de outra forma, todas as coisas são compostas de matéria e todos os fenômenos são o resultado de interações materiais, cujo teatro de movimentação é o espaço-tempo. Aquilo que vulgarmente chamamos de imaterial, o fenômeno superestrutural, não é uma ausência da matéria, mas um atributo seu ou um nível superior de sua própria organização.
Para o idealismo, a matéria é criada (ou destruída) a partir de uma nada material (pelo mundo das ideias ou por um ser sobrenatural). Para o materialismo, por sua vez, toda a matéria sempre existiu, porque, como disse Lavoisier, na natureza “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” (lei da conservação).
Na concepção materialista, tudo é physis, sempre em transformação, segundo regras de causa e efeito, no espaço-tempo.
A matéria mais organizada, em forma de consciência, é physis, mas também é nomos.
A physis segue as leis da natureza. A natureza e suas leis subsistem independentemente de consciência humana.
Mas o homem, que se submete à physis, também cria o nomos, que são as leis humanas, aqueles leis que os homens dão a si próprios (e muitas vezes nem sabem – e ai temos a heteronomia, que se contrapõe à autonomia).
O nomos não são leis derivadas do mundo das ideias ou de um Deus, mas da práxis, das relações que os homens mantém entre si (em sociedade) e com a natureza para a sua própria existência. Relações contraditórias (dialéticas).
A natureza, que inicialmente era um meio de subsistência do homem, com o tempo passou a integrar o conjunto dos meios de produção. Por assim dizer, a natureza foi “socializada”, pois sobre ela há uma prática humana organizada, que se de desenvolve no curso da História.
E ai temos as formações sociais e econômicas que se sucedem, como o escravismo, o feudalismo e o capitalismo (até aqui), havendo sobre elas uma “institucionalização” que lhe da legitimidade (para bem e para mal), compreendendo a cultura, as normas jurídicas e morais, a estética, o conhecimento, etc.
Nesse desenrolar histórico, não há intervenção sobrenatural, mas práxis humana. Há a physis e o nomos.