
Flávio Bettanin
Amigo Charles, agradeço a deferência de me colocar essa interessante matéria e me convidar para debatermos.
Tendo recebido a primeira dose da vacina, recobro o ânimo para expor algumas ideias, sabendo sempre que resultam de uma pulsão que me leva a escrever, mesmo ciente da superficialidade dos conteúdos pelos limites de minha sabedoria.
Duas questões logo se apresentam, existindo muito mais se fizermos leitura de toda Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: qual o conceito de filosofia adotado pelo autor. E, outro, o que Marx quis dizer afirmando: – A filosofia não pode se realizar sem a extinção do proletariado, nem o proletariado pode ser abolido sem a realização da filosofia.
Entendo que, para dar resposta a estas questões, impõe-se que se estabeleça a cronologia das obras de Marx para acompanhar a evolução de seu pensar. Buscar o estágio dessa evolução, pois nele há de se dar respostas. De outra forma estaríamos dando nossa opinião de hoje sobre classes sociais, proletariado, história etc. e não o que ele pensava sobre essas categorias no momento que escrevia. Escrita em 1843, se atentarmos pelo que o próprio Marx diz sobre a evolução de seu pensamento, estava num momento de confissão de carências porque lhe faltavam bases para o que buscava.
Depois de fazer a crítica sobre religião, escreve nessa Introdução: “Assim, superada a crença no que está além da verdade, a missão da história consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiro objetivo, uma vez que se desmascarou a forma da santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está a serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação em suas formas não santificadas”.
Ele diz sobre o caminho de suas investigações filosóficas e históricas no Prefácio da Crítica à Economia Política: “O meu estudo universitário foi o da jurisprudência, o qual no entanto só prossegui como disciplina subordinada a par de filosofia e história. No ano de 1842-43, como redator da Rheinische Zeitung [N174], vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais”.
Entendo possível já afirmar, quase repetindo os seus dizeres, que, quando escreve para Marx a filosofia é exercício de ideias postas na missão de revelar a verdade que nos circunda, removendo a autoalienação, orientando o curso da história. Sendo a verdade revelada e concretizada, ela desapareceria por não ter mais objeto. A filosofia é eliminada pelo próprio fato de se realizar.
Na leitura da Introdução me faz deduzir que, para Marx, desse exercício de ideias resulta uma teoria: “A teoria só se realiza numa nação na medida que é a realização de suas necessidades… Não basta que o pensamento estimule sua realização; é necessário que esta mesma realidade estimule o pensamento”.
Faz excursões sobre o desenvolvimento dos países capitalistas, comparando-os com o da Alemanha e vai percebendo no exercício filosófico conexo a importância dos “interesses materiais”, a realidade da época.
Naqueles países, Inglaterra e França, descobre as classes em conflito e vê no proletariado a classe que tem a missão de superar esse conflito transformando seus interesses particulares em universais.
Este é, a meu ver, o Marx de 1843. Inteligível, pois o que Marx de 1843 quis dizer, a filosofia e proletariado, a teoria e a prática, realizando a síntese, conquistando o objetivo de revelar a verdade real, colocariam a sociedade no reino da liberdade, fenecendo ambos. Estágio de seu pensamento evidentemente insuficiente, mas a leitura da parte final da Introdução permite que se diga em que direção seus olhos, mente e coração de dirigiam: “Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo gaulês anunciará o dia da ressureição da Alemanha”.
O canto do galo gaulês cantou nas barricadas de Paris em fevereiro de 1848 quando burgueses, proletários, camponeses, estudantes, intelectuais uniram-se para derrubar a monarquia instituindo a República, mas que em junho daquele mesmo ano, banidos os proletários, foram afogados num mar de sangue, seguindo os acontecimentos até 1851 para dar na farsa de Luis Bonaparte, o Napoleão III.
É importante constatar que Marx, nesse interregno, entre a Introdução em comento e os acontecimentos de 1848 a 1851, avançou de maneira importante nos seus estudos e formulações teóricas, registradas em Manuscritos Econômicos e Filosóficos. É o Marx em outro patamar teórico que escreve sobre o cantar do galo gaulês, tragédia e farsa, em O 18 de BRUMÁRIO DE LUÍS BONAPARTE.