Sempre que a economia e a política entram em grave crise, acentuam-se os discursos de intolerância. Aliás, a propagação do ódio já havia iniciado bem antes, como reação da nossa elite branca, afeita ao estilo de vida da Casa Grande, às políticas de inclusão social dos governos Lula e Dilma.
Depois do golpe, o recrudescimento da crise negou o discurso das facilidades vendidas por Temer, pelo pato da FIESP e pela grande mídia empresarial. A entrega do pré-sal e de outras riquezas nacionais ao capitalismo de fora não produziu o efeito esperado pela propaganda golpista.
O cenário de incertezas causado pelo quadro de crise vai alimentando uma cultura de insegurança, cuja resposta fácil é traduzida nos apelos punitivistas, que nada mais são do que a tentativa de transformar o sistema penal em instrumento de consumação de vinganças privadas, bem ao gosto da visão dos Bolsonaros da vida.
O Estado brasileiro pós-golpe, parafraseando Marx, mais parece um comitê para gerir os negócios da burguesia. Por isso, não cumpre a Constituição Federal que, em seu art. 3º, estabelece como objetivos fundamentais da República construir uma sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A elite branca não quer saber de realizar inclusão social, isso não é prioridade e prejudica os negócios. E o conflito que resulta disso é tratado com o direito penal.
O fenômeno da criminalidade, por certo, não se reduz a um subproduto da exclusão social, trata-se de um problema mais amplo, tem causas complexas e profundas. Mas o grau de espoliação de um povo é fator relevante, basta constatar que grande parcela da população carcerária aqui no Brasil é formada por pobres, pretos e outras minorias socialmente excluídas.
Seja como for, não se pode apostar na solução mágica de recrudescimento das leis e da intervenção penal, por vezes a custa das garantias individuais. Caso contrário, em nome do combate à criminalidade vamos bater às portas da barbárie – se é que já não estamos nesse ponto.
Mas a perspectiva de um Estado vingador também se revela na jurisprudência criada nos tribunais. Um exemplo disso pode ser visto na restrição da aplicação do princípio da insignificância.
O princípio da insignificância tem o condão de afastar a tipicidade material do fato, apresentando os seguintes requisitos para sua incidência: a) mínima ofensividade da conduta, b) ausência de periculosidade social da ação, c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e d) inexpressividade da lesão jurídica.
O furto (apropriação sem violência), por uma pessoa socialmente marginalizada, de uma peça de roupa no valor de R$ 10,00 (dez reais), logo a seguir devolvida ao endinheirado proprietário, tem a tipicidade material comprometida diante do princípio da insignificância. Todos os vetores de incidência do princípio estão presentes.
Conforme amplamente divulgado, o min. Dias Toffoli, do STF, no HABEAS CORPUS 143.921, negou seguimento ao “remédio heroico”, desfavorecendo o paciente (réu), condenado por furto de bermuda de R$ 10,00 (dez reais), sob o argumento de que o princípio da insignificância não deve ser aplicado quando for o caso de reincidência.
No mundo abstrato, o silogismo é perfeito. Nos casos de reincidência, a aplicação do princípio da insignificância poderia se prestar como um escudo capaz de estimular repetições.
Porém, no caso concreto, considerando que o jurisdicionado é pessoa com dependência química, vivia na rua e, ainda, restituiu a peça de roupa, não me parece nada razoável a decisão tomada, em que pese a reincidência. Faltou temperança, além de ignorar a realidade material a que estava submetido o “paciente”! Tem-se aí, na verdade, o atendimento ao clamor de punições mais fortes, da atuação do Estado como um vingador!
Note-se que o subprocurador-Geral da República, Edson Oliveira de Almeida, em seu parecer pediu fosse reconhecida a atipicidade do crime por conta da insignificância da conduta do réu. Tais argumentos, ainda que vindos do MP, não sensibilizaram o min. Toffoli.
Não seria o caso de o Estado brasileiro retomar o seu cuidado com as pessoas, investindo em políticas públicas de inclusão social, saúde, educação e melhor distribuição de renda como mecanismo de enfrentamento à criminalidade? Ou reincluir o Brasil no mapa da fome e entupir os presídios de gente é o melhor caminho?
O punitivismo, tristemente, ignora que o direito penal é a ultima ratio do controle social, que somente deveria ser empregado diante de ineficácia de outros mecanismos de inibição de condutas. No entanto, para a turma do “prende e arrebenta”, a política criminal é a “entrada” de um cardápio pouco criativo e desumano.
A decisão em comento, inteiro teor, pode ser acessada aqui.