Ontem, 14 de julho, aniversariou a queda da Bastilha, evento de 1789, em França, marco simbólico da ação revolucionária da burguesia francesa (sim, os burgueses já foram revolucionários), que ao cabo transformou sua hegemonia econômica em hegemonia política (jurídica, cultural e militar), expulsando do poder a aristocracia e a monarquia absolutista – o Ancien Régime – e operando a transição da desgastada formação social e econômica feudal para a capitalista.
A Bastilha foi erguida por Carlos V, entre 1369 e 1382, com oito torres, muralhas de vinte e cinco metros de altura cercadas por fossos com oito torres. Inicialmente cumpria a função de proteger Paris dos ingleses, mas depois foi transformada na primeira prisão estatal no século XVII, reservada principalmente para os inimigos políticos do rei e da nobreza, de modo que se tornou um monumento do absolutismo.
Na Bastilha eram encarcerados os inimigos do sistema de poder absolutista, sem qualquer processo legal, direito de defesa e formalização de culpa. Na “execução da pena” eram torturados e desconsiderados de sua humanidade. A nobreza contava com cartas em branco assinadas pelo rei, que equivaliam a mandados de prisão, utilizadas para prender qualquer pessoa que contrariasse os seus interesses. Um verdadeiro vale-tudo autorizado pelo Estado!
No encerrar do século XVIII, a França era país agrário, iniciando sua revolução industrial, o que permitiu à classe burguesa, proprietária dos meios de produção, acumular capital, por conta da mais valia retirada da classe proletária (assalariada), e construir sua hegemonia econômica.
Como se percebe, o novo modo de produção apresentava como elemento chave duas classes sociais, os burgueses empregadores e donos dos meios de produção e os proletários que vendiam a sua mão de obra por salário. Embora consolidado o poder econômico, faltava aos burgueses o poder político, que estava nas mãos do rei, da nobreza e do clero. As novas forças produtivas entravam em choque com as antigas relações de produção servis, reclamando uma nova formação social e econômica, uma nova estrutura jurídica, cultural e de poder.
À época, a sociedade francesa restava composta por três estamentos: o clero, chamado de Primeiro Estado; a nobreza, o Segundo Estado; e grande maioria do restante da população, que incluía burgueses, proletários e camponeses, formam o Terceiro Estado.
E é este Terceiro Estado que, sob o ponto de vista superestrutural (relações de poder, relações jurídicas, etc), diante da nova realidade material e estimulado pelos ideais iluministas de liberdade e igualdade, insurge-se contra o antigo regime.
No dia 14 de julho, a multidão, na pressão dos últimos acontecimentos, moveu-se contra a Bastilha, tomando de assalto e destruindo o símbolo do despotismo e do vale-tudo do antigo regime, que não se encaixava no novo modo de produzir a riqueza e no ideário iluminista e liberal que, em boa medida, lhe correspondia.
Depois da queda da Bastilha, os burgueses realizam sua revolução, estabeleceram a formação social e econômica capitalista, tornaram-se classe dominante e, com isso, não realizaram os ideais de igualdade e fraternidade desenhados pelos iluministas.
Fazendo um paralelo com a nossa realidade aqui no Brasil, à luz dos últimos acontecimentos, com todas as ressalvas históricas necessárias (Marx já disse que eventos trágicos se repetem como farsa), temos uma Bastilha para por abaixo. E não falo aqui no local em Lula está aprisionado ou à “República de Curitiba”. Tampouco estou aqui afirmando que se está a um passo de uma revolução para derrubar o capitalismo e criar uma nova formação social e econômica baseada em relações solidárias e não assalariadas (a utopia, o não-lugar), muito embora meu amigo Flávio Bettanin discorde disso (ele diagnostica uma alteração na base material, uma contradição incontornável entre as novas forças produtivas não capitalistas e as já carcomidas relações de produção capitalistas).
A Bastilha que temos de derrubar aqui no Brasil são as forças retrógradas, esse consórcio formado pelos golpistas, alojados em setores estratégicos dos “cinco poderes” (Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e grande mídia empresarial), que para a saída da atual crise mundial do capitalismo decidiram colocar em prática a qualquer custo o receituário neoliberal (Estado Mínimo e Direito Penal Máximo), ainda que no caminho desconstruindo o Estado Democrático e Social de Direito desenhado na Constituição Cidadã de 1988.
O ex-presidente Lula, segundo o enclave desta nova Bastilha, tem de ser mantido preso porque a partir do seu governo o Brasil passou a construir políticas públicas para dar efetividade aos direitos sociais inscritos na CF 88. A declaração antecipada de sua inelegibilidade, exigida pela grande mídia empresarial, representa a construção institucional de mais muralhas, torres e fossos para separar Lula do povo.
Com a crise global batendo às portas do Brasil, a classe burguesa, pelos seus setores mais conservadores, passaram a agir para desfazer as políticas de inclusão social, inclusive atacando direitos trabalhistas que foram consolidados na Era Vargas! Lula não pode voltar porque com ele a burguesia vai ser chamada apara ajudar a pagar a conta, o que a impediria – na coligação que forma com a burguesia internacional (e lá se foi o nosso pré-sal) – a retomada de uma nova fase de acúmulo de capital.
Note-se que a burguesia liberal local deu lugar a uma burguesia conservadora, desapegada do acúmulo libertário iluminista. Essa gente não se importa mais com o devido processo legal, com o contraditório e a ampla defesa, com a presunção de inocência ou com o “remédio heroico” (habeas corpus). Passaram a adotar os critérios da nobreza do antigo regime, encarcerando seu inimigo político número 1, o Lula, sem ampla defesa, sem provas e sem condenação transitada em julgado.
Lula livre representa exatamente a luta contra o retorno aos métodos que a Bastilha simbolizava. Não se trata, obviamente, de uma luta estratégica – uma revolução contra o capitalismo, embora ela fosse necessária (no sentido de superação do atual formação social e econômica hegemônicas) -, mas uma luta tática, uma ação para resguardar o Estado Social e Democrático de Direito, ferramenta necessária para a construção de uma utopia possível.
No momento, é o que temos. Ou lutamos contra esse estado de coisas, inclusive conclamando a atuação dos poucos liberais que sobraram, ou o restará a Bastilha e o despotismo disfarçado de liberalismo “moderno”.
Lula livre!
(sem revisão).