
Mas uma crônica sobre o óbvio. Um óbvio abraçado pela nova normalidade e pelo interesse econômico, que por isso mesmo vai para a pasta da desinformação e do desinteresse.
O assassinato, na sexta-feira, de duas primas pobres e negras, Emilly (4 anos) e Rebeca (7 anos), baleadas quando brincavam na porta de casa em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, é mais uma demonstração de que as políticas de segurança pública são voltadas para resguardar brancos e “cidadão de bens”. Negros e pobres não entram na equação de segurados pelo Estado, até porque são considerados o “inimigo no outro lado da trincheira a ser abatido”, na visão militarista dominante.
Familiares das vítimas afirmaram que a polícia atirou nas meninas. “Estava chegando do trabalho e saltei do ônibus. Eu escutei no mínimo dez disparos. O ônibus passou e a blazer estava parada e deu aquele arranco para sair. Ele parou em frente à rua e simplesmente efetuou os disparos”, contou para a imprensa a avó de Rebeca, Lídia Santos.
A PM, por sua vez, negou ter feito qualquer disparo, alegando que estava patrulhando naquele local, quando ouviu os estampidos e foi averiguar.
O caso tem se ser apurado com rigor, é o que se espera. Mas o risco é pelo inconcluso.
Segundo a ONG Rio de Paz, desde 2007 até agora, 79 crianças foram mortas vítimas de armas de fogo no Rio de Janeiro, a maioria delas por balas perdidas. Neste ano, já são 12 o número de crianças mortas por armas de fogo naquele Estado.
Mas o problema não é restrito ao território fluminense.
De acordo com dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Brasil teve ao menos 4.971 crianças e adolescentes mortos de forma violenta em 2019, Desse total, ¾ eram negros (dados são referentes a 21 estados, contemplando 85% da população brasileira). Um detalhe: estas quase 5 mil mortes de crianças e adolescentes foram retiradas de um universo que contabilizou 47.773 mortes violentas no ano passado, mas que não incluiu 13.705 mortes de brasileiros porque não foram esclarecidas.
Quando crianças negras e pobres são mortas, como no caso de Emilly e Rebeca, sempre surge a expectativa que a grande mídia empresarial, que movimenta a opinião pública e a opinião publicada, dará voz aos movimentos sociais e ONGs, fomentando um debate de longo curso sobre política de segurança pública voltada para estes brasileirinhos, além de discutir a violência em geral e o necessário desarmamento.
Também se espera que a sociedade desperte para o problema e cobre das autoridades públicas soluções. E que os detentores de mandatos eletivos, com coragem, assumam um compromisso maior com a causa destes meninos e meninas, criando políticas integrais (desde a segurança pública, passando pela saúde, educação e desembocando na geração de renda e emprego para as famílias).
No entanto, fica tudo como dantes no quartel-general em Abrantes. A imprensa trata do tema sem qualquer profundidade, aborda o fato em si, mas nega-se a classificar estas mortes como resultado de uma política de segurança pública e de uma política econômica equivocada, classista e racista, depois de dois ou três dias “arquiva” o tema. Os crimes não são elucidados, na grande maioria das vezes. As autoridades públicas mantém conduta de indiferença diante do problema. Panelas não são batidas. Comoção somente entre membros da família e vizinhos.
Assim, segue-se com uma política de segurança pública racista e violenta, cujo “cliente” é o branco e o rico, dentro de uma contexto de economia voltada para concentração de renda e exclusão social. A barbárie vista como “normalidade”.
Mudando um pouco o sentido da frase da campanha presidencial de Bill Clinton, iIt’s the economy, stupid (é a economia, idiota), caso discutir a morte de crianças pobres e negras desnude o sistema econômico de exploração e de exclusão social, melhor não fazer esse debate! Assim pensa a elite econômica brasileira.