Toda contradição, ainda que ignorada, um dia se revela e traz suas trágicas consequências. Caso não enfrentada e superada (por ausência de fundamentos subjetivos e/ou objetivos), volta à moita da História para futuras e fantasmagóricas aparições. Nessa hipótese, diria Marx vivo fosse, não se trata necessariamente de tragédia política, mas de uma farsa pela repetição do evento.
Já fiz, em duas oportunidades, minha crítica às emendas parlamentares, vide clicando aqui e aqui, discorrendo sobre suas contradições e de como os parlamentares de esquerda, por razões eleitorais e pragmáticas, abandonaram a boa luta.
Na ocasião, destaquei que pelas emendas individuais (mas isso também vale para as emendas de comissão) os parlamentares passaram a atuar como prefeitos temporários de alguns municípios, decidindo as obras públicas a serem executadas, situação que geralmente acaba pulverizado os recursos do Orçamento da União em pequenos projetos paroquiais.
O escândalo do “Anões do Orçamento”, envolvendo inúmeros desvios de recursos públicos pelo sistema de emendas parlamentares, não foi suficiente para os brasileiros exigirem o fim desta disfunção parlamentar. Ao contrário, no curso do tempo surgiram as emendas individuais impositivas e o “orçamento secreto” (as famosas “emendas do relator”, que nada mais são do que as antigas emendas de comissão, hoje chamadas de RP8), aumentando a participação do sistema de emendas no Orçamento da União.
Agora se tem notícia, acesse aqui, revelando que o Presidente Lula se vê obrigado a vetar R$ 5,4 bilhões em emendas de comissão sob pena de inviabilizar importantes programas sociais e de investimentos – caso do PAC – no Orçamento para 2024.
Deputados e senadores, não mais anões e sim gigantes gulosos, pretendem abocanhar R$ 16 bi em emendas individuais e de comissão. Em ano eleitoral, a ordem é “mostrar serviço”, atuar como “prefeitos federais”, distribuído dinheiro via emendas.
O governo pretende vetar as emendas RP8, mantendo as individuais – que são, em termos, impositivas.
Lula está entre a espada e a cruz.
Num primeiro cenário, Lula sanciona a totalidade das emendas parlamentares e, com isso, encurta o cobertor dos programas sociais e do PAC, trazendo dificuldades para realizar seu programa de governo, especialmente em relação às políticas públicas de inclusão social, geração de emprego e crescimento econômico via obras públicas. Também corre o risco de comprometer seriamente o busca do “déficit perto de zero”.
Por outra banda, se Lula vetar as emendas RP8, como anunciou a mídia (em balão de ensaio solto pelo Governo para “sentir o clima”), vai criar dificuldades com “sua” base parlamentar no Congresso Nacional. Ninguém é ingênuo ao ponto de ignorar que a governabilidade na esfera federal é construída pela liberação de verbas das emendas parlamentares, especialmente as de comissão. E é assim porque o eleitor médio tem dificuldade de eleger deputados e senadores com projeto similar ao presidente escolhido – é a crise da representação.
Lula, habilidoso e experiente, atento à realpolitik, certamente vai negociar (ou, pelo menos, tentar) um meio termo com o Congresso Nacional, a fim de viabilizar minimamente o seu governo.
Mas o pesadelo das emendas dos “300 picaretas com anel de doutor” (aqui faço alusão ao título da canção composta por Herbert Vianna), vai assombrar o “Luís Inácio” a cada orçamento anual, especialmente o de 2026, ano de eleições gerais. Os deputados e senadores, mantidas as condições atuais de temperatura e pressão – e nada indica eventual mudança -, apresentarão uma fatura bem picante. É a farsa que falei lá no início.