“(…) a sociedade precisa corajosamente levantar a questão “de direito” acerca de suas instituições, perquirir a origem de seus valores e de suas crenças mais arraigadas (…)”
A utopia (o “não lugar” que buscamos) de construção de uma sociedade democrática – poder do povo – passa pela articulação de uma sociedade autônoma, no meu sentir.
E nada mais propício do que o período eleitoral para tratar desse tema, ainda mais na situação de exceção democrática vivida no Brasil, em que o povo não pode votar no candidato a presidente de sua preferência, o Lula, cujos direitos políticos estão sendo desrespeitados pelo Estado brasileiro, segundo o Comitê de Direitos Humanos da ONU.
O filósofo Cornelius Castoriadis, morto em 1997, concentrou a força de seu pensamento no percurso histórico da humanidade. Sua tese central era de que o ser humano reúne condições de criar uma sociedade autônoma – que dá a si mesma as leis pelas quais se orientará. Aqui há uma radicalidade a ser salientada: na sociedade autônoma, ela se dá conscientemente as suas leis, não as recebe de um terceiro.
De imediato, importa fazer uma separação aqui sobre quais as “leis” são reportadas por Castoriadis em seu estudo. Para isso, necessário fazer uma distinção entre physis, a natureza em si, tudo do que é natural, que provem da natureza, do mundo material, como as leis da física, da biologia, etc., e nomos, que são as normas que o homem cria no campo superestrutural, tais como regras de convívio, diretrizes morais, deontologia, sistema de justiça, etc. Note-se que o pensamento grego começa a perceber a diferença entre as leis da natureza – physis – e as leis humanas – nomos – somente a partir do movimento pré-socrático.
Castoriadis, quando fala em sociedade autônoma e na capacidade de os homens engendrarem de forma consciente suas leis, está falando em nomos. Por isso utiliza a expressão auto + nomia.
Retomando. A consolidação de uma sociedade autônoma pressupõe a existência de indivíduos autônomos, reflexivos, questionadores de suas instituições, que na interação com os demais indivíduos livres e iguais, o povo, instituam/constituam uma sociedade efetivamente democrática.
Para o filósofo de origem grega, autor de A Instituição Imaginária da Sociedade, os humanos produzem figuras providas de sentido, por ele chamadas de significações imaginárias. Quando o homem atribui um sentido a algo, está criando uma significação imaginária. Essas significações socialmente produzidas (que funcionam como leis, formas, eidos) se apresentam geralmente sob o formato de instituições, como o Direito, a Moral, a Cultura, a Economia, a Religião, a Política etc. Entre os seres viventes, somente o homem é capaz de produzir instituições e o faz na e pela História – e não fora dela, sem predeterminações e sem um “diretor escondido” (o Demiurgo dos platônicos).
Segundo Castoriadis, admitir a hipótese de uma sociedade autônoma significa considerar a possibilidade de que o coletivo pode e deve fazer as suas leis, não tão somente recebê-las (de uma classe dominante) ou atribuí-las a terceiros (divindades). Como visto acima, o sentido de lei aqui empregado, fique bem entendido, não se reduz ao aspecto jurídico. Essas leis nada mais são do que estruturas significativas fixadoras de padrões estéticos, morais, econômicos, religiosos, etc. que passam a ser seguidos pelos indivíduos (o corte do cabelo, a gíria do momento, a forma de organizar a produção, a relação matrimônio/patrimônio, as ações para preservar/destruir o meio ambiente, como riqueza é produzida e, por fim, distribuída, etc.).
Na verdade, os humanos fazem as suas leis, criam sentido ao que está ao seu redor. A dificuldade reside no fato de que a imensa maioria dos membros de cada sociedade dada não participa como sujeito ativo desse processo de criação, embora de certa forma lhe de funcionalidade pela sua posição passiva, de aceitação pela inércia. Mais grave: sequer visualiza esse processo instituinte, dele não se apercebendo. Essa falta de consciência de quem produz a lei é uma característica das sociedades heterônomas, que vivem no fechamento, recebendo leis “de fora”.
O fechamento, para Castoriadis, é aquele sintoma apresentado por uma sociedade incapaz de questionar suas instituições (aquilo que foi por ela instituído, criado, e por ela é cegamente seguindo), acatando os valores que lhe são repassados. Não questiona “de direito”, no sentido que não se pergunta: essa regra é justa? Qual o fundamento dessa lei? Esse padrão é razoável? Essa instituição é universal, de tal modo que não prejudica uns em detrimento de outro?
Mas além de não colocar em debate suas significações, a sociedade que se fecha não se indaga acerca de quem criou suas instituições, atribuído a seres mitológicos a responsabilidade. Essa negativa de autoria acaba por camuflar as relações de poder e de domínio existentes. A sacralização da autoria – que deixa de ser humana, de uma classe/etnia/gênero dominante – torna-se inquestionável, já que deuses não são suscetíveis à censura. Por isso, esse tipo de “instituição” é qualificada como fechada em si mesma: a regra é posta de tal forma que ela se torna uma espécie de cláusula pétrea, que não pode ser modificada porque o legislador que a criou é infalível, imaterial e acósmico.
O fechamento tem outra fonte, além do sacro: a compreensão de que há uma racionalidade na História, uma predeterminação ou uma naturalidade na sucessão dos fatos históricos, no sentido de que antes mesmo de acontecerem já havia lei natural que previamente o definia.
Exemplo singelo dessas conclusões de Castoriadis é a dominação imposta pelo gênero masculino ao feminino na quase totalidade do desenrolar da História. Nos dizeres das diversas sociedades em que o homem submete a mulher, a regra de império foi dada por um ente sacro ou por uma suposta lei da natureza. A femina deve se sujeitar ao vir não por uma imposição desse próprio macho, mas porque está normatizado na Bíblia, no Alcorão, nas estrelas do zodíaco, nas cartas etc. ou porque o masculino, por uma disposição prévia imposta pela natureza, é necessariamente mais forte, o que justificaria o seu mando.
A construção de uma sociedade autônoma – em que os humanos criam de maneira consciente as suas leis, leciona Castoriadis, exige que esse fechamento seja rompido. Para tanto, a sociedade precisa corajosamente levantar a questão de direito acerca de suas instituições, perquirir a origem de seus valores e de suas crenças mais arraigadas. Não se trata, sob o ponto de vista do indivíduo e da psique, de uma tarefa confortável. Ela exige o enfretamento dos fantasmas mais íntimos de cada humano vivente.
Obs.: para quem aprecia o pensamento de Cornelius Castoriadis, recomendo a leitura de Feito e a Ser Feito, quinto tomo da obra As Encruzilhadas do Labirinto, editora DP&A, 1999.
Um comentário sobre “Sem sociedade autônoma não há democracia”