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NOTAS SOBRE POLÍTICA E CIDADANIA

A democracia, instituição humana e método de distribuição e exercício de poder, tem enorme desafio: diante da alteração das condições econômicas (base material), legitimar o processo social, econômico e político que está surgindo.

A alteração das condições econômicas a que me refiro decorre, principalmente, das inovações tecnológicas, dentre elas, a inteligência artificial, e da reação do sistema financeiro, que reorganiza as formas de acumulação do capital. Os avanços tecnológicos desestruturam o trabalho vivo (aquele que exige o trabalho humano), reduzindo o nível de emprego e a massa salarial, afetando com isso o consumo (só a elite não garante o nível de consumo necessário para o sistema se manter).

Se a democracia não se reinventar, as consequências poderão ser amargas para a grande maioria das pessoas, com mais exclusão social e econômica, deslegitimando o método democrático e permitindo o crescimento de “soluções” autoritárias e fascistas. Aliás, não é por outro motivo se vê o ressurgimento, em escala mundial, da extrema direita, que vai aglutinando adeptos dentro da massa de excluídos.

Na busca pelo aperfeiçoamento da democracia, o imperativo é revisitar o conceito original de Poder Legislativo de Rousseau, que, segundo o pensador iluminista, trata-se do próprio povo.

Ao exame, a democracia indireta tem se mostrado insuficiente e, utilizando uma expressão marxista, ela possivelmente já não corresponda às “condições materiais”. Uma nova formação social e econômica, mais inclusiva e justa (penso naquilo que se tem chamado de economia solidária, conforme Paulo Singer, na obra Introdução à Economia Solidária, 1ª ed. São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2002), somente terá chances de se consolidar, obtendo legitimação social, na hipótese de desenvolvimento da democracia participativa.

Marx afirmou no Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859):

“Na análise dessas transformações, deve-se sempre diferenciar entre a transformação material das condições econômicas de produção – a ser constatada fielmente segundo as ciências naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, formas ideológicas, com as quais os homens tornam-se conscientes desse conflito e o extinguem”.

Ainda que sem qualquer adesão à vertente economicista do marxismo, parece-me que a sobrevivência da democracia e, sobretudo, a definição de uma nova formação social e econômica, mais justa e fraterna, somente será viável se a sociedade (na fração civil e na fração política) for capaz de organizar a democracia com participação popular direta, obviamente mesclada com a representativa/parlamentar.

Fazer a crítica à democracia representativa não é necessariamente rejeitá-la. Trata-se de reivindicar da democracia um salto qualitativo. E uma possibilidade de avanço é a democracia participativa, que reúne aspectos de democracia direta com vicissitudes da democracia parlamentar.

Um exemplo de pequena introdução de democracia participativa é o Orçamento Participativo, já experimentado com sucesso, mas que foi aos poucos abandonado. Uma incipiente forma de democracia participativa, que realizava seus movimentos dentro da realpolitik, tencionando governos e parlamento no sentido de fazer prevalecer os investimentos decididos em assembleias públicas.

A democracia representativa e a clássica divisão dos poderes de Montesquieu são figurinos que estão se revelando insuficientes para atender a todas as demandas das forças produtivas da atualidade, de modo que travam o surgimento de uma novel formação social. Evitando mal-entendidos: não se trata se jogar fora a bacia de água suja com as crianças dentro, mas de aperfeiçoar a democracia e suas instituições.

Se no início do capitalismo a democracia liberal estava em consonância com o desenvolvimento das forças produtivas de então, a estagnação de agora se converte num obstáculo. Por isso se vive aquilo que a ciência política denomina de crise da representação parlamentar, processo que corrói de dentro para fora a legitimação da democracia, na medida que parcelas da sociedade não se percebem adequadamente representadas nas instituições de Estado e não participam da formação da decisão acerca das regras da divisão das riquezas socialmente produzidas.

Como entendo que um “mundo melhor é possível”, defendo que o caminho da superação da crise de legitimidade, diante das transformações tecnológicas e econômicas, passa pela construção da democracia participativa. O outro caminho é o recrudescimento da crise, abrindo-se espaço para soluções autoritárias. Uma encruzilhada.

Um comentário sobre “A DEMOCRACIA NA ENCRUZILHADA

  1. É interessante notar que as duas últimas postagens estão conectadas. No anterior, a gente tem mais um salto tecnológico revolucionando o mundo do trabalho, neste, a crise da superestrutura política frente a essa base. Há algum tempo, a principal objeção à democracia direta era a falta de meios (“não podemos colocar todo mundo numa praça”), agora, esses meios já existem, estão sendo usados para tudo, exceto como ferramenta de exercício da democracia (ou usadas de forma muito limitada, como consultas públicas que engajam apenas os grupos particularmente interessados na temática).

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