
Por Fagner Garcia Vicente
Esta foto foi compartilhada (no Facebook) por Amadeu de Almeida Weinmann e retrata um desfile celebrando o 20 de setembro em Ijuí, no ano de 1940. A imagem é particularmente interessante por três motivos: (1) é anterior à fundação do 35 CTG, marco inicial do movimento tradicionalista gaúcho; (2) nela predominam lenços brancos e (3) os cavaleiros portam bandeiras do Brasil ao invés das do RGS.
Esses três elementos vão contra boa parte do senso comum a respeito do tradicionalismo – seja dos que o defendem, seja dos que o criticam. Por isso, para quem se interessa pelo tema, vale a pena resgatar, mesmo que de forma grosseira, um pouco da história.
A celebração do 20 de setembro não começou, como se acredita, em 1947, quando um grupo de estudantes do colégio Julinho, em PoA, liderados por Paixão Côrtes, fez sua primeira vigília da chama da pátria – tornando-a chama crioula. Já existia no final do século XIX, entre positivistas republicanos, que buscavam na Revolução Farroupilha um “mito fundador” para seu próprio movimento revolucionário. “Clube 20 de setembro” era o nome da organização que sediava os estudos de Júlio de Castilhos e Assis Brasil na faculdade de Direito de São Paulo. O Major Cezimbra Jacques, intelectual, folclorista santa-mariense, foi um dos precursores do que se pode chamar de “tradicionalismo” – a busca de uma identidade gaúcha calcada na reinterpretação de determinados eventos históricos – além de fundador do Grêmio Gaúcho, em 1889.
Ou seja, inicialmente, o nosso identitarismo esteve banhado no positivismo chimango, oposto ao ideal das oligarquias agrárias maragatas (daí o lenço branco predominante, mesmo em 1940, quando essa divisão ideológica tinha perdido grande parte do seu sentido, considerando a “unificação” operada por Vargas). Manuelito de Ornellas, um dos intelectuais que mais influenciou o tradicionalismo gaúcho na sua alvorada (fez, inclusive, o discurso de abertura do I Congresso do MTG, em 1954), era redator-chefe do jornal oficial do Partido Republicano Riograndense (PRR) e, em sua obra sociológica, defendia a concepção platina do gaucho (este tipo popular, mestiço, sem terra nem paradeiro, que abundava nos pampas), oposta à concepção elitista do gaúcho estancieiro, “patrão”.
Mesmo Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, principais representantes da geração fundadora do MTG, seguiam essa linha. Em diversas entrevistas, Paixão relata que a preocupação a movê-los, ao menos inicialmente, era a invasão da cultura estadunidense, que se espalhava pelo mundo no pós-guerra e ameaçava de esquecimento manifestações culturais genuínas dos povos. Durante anos, a dupla se dedicou a documentar essas expressões diversas, registrando e entendendo exatamente sua pluralidade. Lessa, talvez o maior intelectual do tradicionalismo nascente, deixava clara, na tese apresentada no I Congresso, sua motivação política não-elitista, fortemente influenciada pela leitura de Cyro Martins, autor da “trilogia do gaúcho a pé”, e da escola sociológica de Chicago, que via na desintegração dos laços sociais as origens das mazelas urbanas.
Não que a tese de Barbosa Lessa fosse um libelo revolucionário. Como grande parte do Nativismo, até hoje, identificava as consequências sociais desagregadoras do avanço do capital, mas não chegava a denunciar as causas. Nesse limbo, se prestava a uma interpretação conservadora, que via a solução na manutenção de um modelo social arcaico. Porém, não respaldava, em absoluto, o resgate do ideário das oligarquias rurais, que viria a caracterizar o MTG nas décadas seguintes.
A questão é que houve o regresso do lenço colorado.
Os movimentos culturais interagem dialeticamente com seu contexto socioeconômico, sendo engendrados por este e influenciando seus rumos. De 1954, ano do primeiro congresso dos tradicionalistas, a 1966, quando o MTG se tornou uma organização oficial, sua linha norteadora (e, quem sabe, o próprio pensamento de suas lideranças) passou a estar sintonizada com a ideologia política que tomava o governo do país. O processo de institucionalização é parte dessa guinada reacionária – são leis da Ditadura que tornam o folclore e a semana farroupilha oficiais. No apagão cultural gerado pela repressão, os CTGs se tornaram uma das poucas vozes no meio – repetindo, é claro, o discurso dominante. Uma entidade pública chega a ser criada (o IGTF) para difundir, por meio do folclorismo gaúcho, o discurso governamental.
É nesse processo que toda a pluralidade cultuada no início é convertida na construção dogmática de um modelo mítico e a-histórico de gaúcho e sociedade gaúcha – imitação infiel da estância dos invasores portugueses. Esse mesmo processo resgata o ideário vencido em 1893, vendendo-o tanto como ideal farroupilha, quanto como matriz do identitarismo gaúcho, predominante, ainda hoje, na maioria das manifestações tradicionalistas. Para os militares americanófilos da década de 60, o tradicionalismo não reagia à imposição cultural estadunidense, mas ao suposto centralismo do Estado Novo varguista. O olhar crítico para a desintegração da estrutura social vira a exaltação ufanista de um passado idealizado. A imagem mítica do gaucho livre nos campos, é substituída pela rigorosa hierarquia estancieira, no topo da qual está o Patrão. A pilcha, tão eivada de regras, assemelha-se à farda. Sob a desculpa da “fidedignidade”, as representações artísticas são maneadas num formalismo tipicamente militar.
Contudo – e, para mim, isso é o essencial –, o uso que as oligarquias, durante e depois da ditadura, fizeram da “cultura gaúcha”, manipulada por uma organização que se arvorou em sua proprietária, não torna a cultura popular gaúcha “artificial”, uma “invenção do MTG”, ou mesmo uma mera mistificação com fins reacionários. Ir nessa linha, como grande parte da esquerda guasca tem ido, só revela o distanciamento da realidade do povo, o desconhecimento da importância que o imaginário sintetizado na busca de uma “identidade” tem para os povos – inclusive para sua autonomia.
Nossa cultura é rica e plural, como sabiam Paixão e Lessa na década de 40 – embora possam ter esquecido disso depois.