
O cosmólogo e astrofísico CARL SAGAN, falecido em 1996, divulgador científico multipremiado, autor de vários livros e de inúmeras publicações científicas, dentro de sua perspectiva cética – e aqui falo de ceticismo científico, que questiona crenças e reclama evidências -, certa feita afirmou que não queria acreditar, mas saber.
A frase de Carl Sagan foi coerente com seu acúmulo de conhecimento e compreensão do mundo, que afastava qualquer fundamentação sobrenatural ou mística em relação ao universo, exatamente porque as evidências coletadas pela Ciência e os modelos científicos desenvolvidos pelo homem trazem outras explicações de fundo material, físico.
Já adianto, para evitar mal-entendidos, não estou aqui sustentado que as pessoas não possam cultivar sua religiosidade. Ao contrário, sempre estive na linha de frente na defesa da liberdade de crença, assegurada na Constituição Federal, e pelo Estado laico, único caminho capaz de permitir as mais diversas manifestações místicas, sem que uma se imponha em relação às outras.
No entanto, o Estado e a sociedade têm de garantir o acesso das pessoas à educação e ao conhecimento científico, recusando as investidas do movimento anticientífico e das falácias das pseudociências.
Tal qual Carl Sagan, não quero acreditar, mas saber. Porém, aqueles que querem saber e, ainda assim, acreditar, está valendo, desde que o sistema de crenças não seja utilizado para desacreditar o saber científico.
Cientistas políticos e estudiosos do tema têm afirmado que um dos suportes do bolsonarismo foi o antipetismo – e continua a sê-lo. Antipetismo entendido, segundo a socióloga MARIA EDUARDA DA MOTA ROCHA, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como um sentimento de recusa não só ao PT, mas de rejeição ao sistema político, às instituições e à própria democracia, cujo fermento é a crise de representatividade. Como o PT esteve no Poder por vários anos, passou a representar o “sistema”, que deve ser substituído pelo modelo de 64, uma ditadura civil-militar, segundo a visão delirante do bolsonarismo.
Já o professor RICARDO MUSSE, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), diz que o antipetismo foi forjado historicamente e tem base num discurso recorrente da elite brasileira, empregado em todas as eleições em que Lula concorreu. De acordo com Musse, a corrupção sempre foi a principal bandeira para desarticular governos progressistas no país, por isso foi abraçada pelo antipetismo a partir do Mensalão, com reforço na Lava Jato.
Sem qualquer embargo a essa linha de argumentação, afirmei em outra ocasião (ver aqui) que o governo Bolsonaro – e, por extensão, o bolsonarismo – se sustenta no discurso do mito, que é fundado numa crença revestida em pseudociência – e não num saber que exige evidências e segue o princípio da falseabilidade. Por isso, o bolsonarismo não se nutre só do antipetismo, mas viceja num ambiente de pseudociência e até de anticiência.
Na obra Armadilhas Camufladas de Ciência, capa ao final do texto, contendo artigos organizados pelo físico MARCELO GIRARDI SCHAPPO, com doutorado em Física pela Universidade Federal de Santa Catarina, é exposta uma pesquisa publicada em 2019, encomendada pelo Instituto Questão da Ciência e realizada pelo Datafolha, demonstrando que somente 54% dos brasileiros concorda total ou parcialmente com um dos princípios basilares da teoria da evolução de Darwin, de que o homem e o chipanzé tem um ancestral comum. E entre 30 e 40% dos brasileiros concordam, pelo menos parcialmente, que a Terra foi visitada por extraterrestres no passado. Mais: 1 entre cada 10 brasileiros não acredita que a Terra gira em torno do Sol.
Noutra pesquisa realizada em 2019, antes mesmo da pandemia, pelo Pew Research Center, centro de pesquisa norte-americano, com 32 mil pessoas entrevistas, de 20 nacionalidades diferentes, o Brasil foi apontado como o país onde menos pessoas acreditam ou têm confiança na ciência (ver aqui)!
Claro que esta separação entre as pessoas e o saber científico não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. O Gallup realizou pesquisa com 140 mil pessoas em mais de 140 países e constatou que 57% da população mundial pesquisada julgou não saber avaliar seu conhecimento sobre ciência ou o enquadrou como pequeno ou nulo, conforme explicitado em Armadilhas Camufladas de Ciência.
No caso tupiniquim, a restrição de acesso dos brasileirinhos ao ensino médio de qualidade e dos assalariados e excluídos às inovações científicas, por imposição da elite econômica, que tudo quer e tudo concentra, é a grande responsável pelo descrédito de parcela significativa da população na Ciência, que fica vulnerável às manobras de pseudocientistas e de movimentos político ultraconservadores, como o bolsonarismo.
Aliás, o antipetismo, arquitetado pela classe dominante, também é uma resposta aos avanços, ainda que limitados, na área de educação e da ciência nos governos Lula e Dilma. Pobre na escola e na universidade, com conhecimento científico, é um perigo! Melhor alimentá-los com pseudociência, anticientificismo, negacionismo, senso comum, teorias conspiratórias e fake news.
O negacionista de Bolsonaro foi a solução encontrada pela elite, numa “escolha difícil”, para derrotar o professor Haddad. Falando em Ciência, aí temos uma evidência, aliás, do que centralmente postulei mais acima.
Não estou dizendo que a classe dominante rejeita a Ciência em bloco, mas que nega o seu acesso às classes populares e que aposta num mundo do trabalho que não se apropria do conhecimento científico, determinando que a sua existência seja alicerçada numa percepção fantasiosa. As inovações tecnológicas são úteis para aumentar a produção e o acúmulo de capital. Não haveria agronegócio sem pesquisa e trabalho científico. Mas quando a Ciência fala em aquecimento global, preservação ambiental, saúde do trabalhador, segurança alimentar, distribuição de renda, acesso à terra via reforma agrária, aí a porca torce o rabo.
Na introdução feita à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), Marx escreveu que a tarefa posta naquele momento histórico em que vivia era desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas, já que fora escrachada na sua forma sagrada (pelo filósofo Ludwig Feuerbach, em A Essência do Cristianismo). Todavia, retrocedemos. Hoje, a “missão” é dupla, tanto contra a alienação política (crítica da terra), quando anticientífica (crítica do céu).
