Assim como os judeus fazem com o Tanakh, os cristãos com a Bíblia Sagrada e os muçulmanos com o Alcorão, os adeptos da democracia deveriam todas as noites, antes de dormir, ler algumas linhas da obra “Futuro da democracia – uma defesa das regras do jogo”, de Norberto Bobbio (Editora Paz e Terra, 1986) [1].
Uma parênteses. Caso a maioria dos integrantes do Congresso Nacional fossem contumazes leitores de Norberto Bobbio, não teriam dado um golpe em Dilma e na frágil democracia brasileira. Nem o Poder Judiciário aceitaria o papel de legitimador da deposição da presidenta Dilma.
Seguindo. O professor universitário, escritor e político Norberto Bobbio (Turim, Itália, 18 de outubro de1909 – Turim, 9 de janeiro de 2004) foi um pensador complexo, que buscou conexões entre a tradição política liberal e a tradição socialista, entre o ideário de Benedetto Croce e as reflexões de Antônio Gramsci.
Como se percebe, a tarefa para a qual Bobbio se propôs não era singela. Seu pensamento era construído, simultaneamente, como crítica e síntese [2] de duas formas opostas de “ler” e atuar sobre a realidade política e e social (e intervir no poder), ainda mais se for considerado que muito de sua produção intelectual foi elaborada no curso da “guerra fria”, momento de bipolarização ideológica, situação em que se era “grego” ou “troiano” – eventuais posições intermediárias ou dissociadas (uma terceira via inclusiva ou “opor fora”) não encontravam eco [3].
Pois Bobbio, na obra acima mencionada, defende que a democracia deveria ser, para o cidadão, um costume, de tal sorte que sem ela algo de essencial lhe faltasse.
Conforme o entendimento clássico, um costume social se corporifica numa norma de natureza moral, ou seja, numa regra de conduta que exprime um valor. Nesse trilho, o melhor guardião da democracia é cidadão que toma a democracia como valor inalienável e que entende a participação popular como seu pressuposto de concretização.
Certamente o cidadão somente lutará por um determinado valor caso encontre nele algum sentido e alguma utilidade para si e para os seus. Bobbio, ao definir o que seja democracia, já dá um belo motivo para o cidadão por ela se abalar: sistema de regras que estabelece quem está autorizado a tomar decisões que vinculam a coletividade e com quais procedimentos.
A decisão, embora tomada por um, alguns ou por muitos indivíduos, tem natureza coletiva na medida em que foi formulada segundo regras disciplinadoras do procedimento (regras essas aprovadas previamente pela coletividade – diretamente ou por meio de representantes eleitos).
Assim, a democracia é o avesso da autocracia (um desvalor, sob a ótica democrática). Na autocracia, as deliberações de interesse coletivo são tomadas por um ou alguns indivíduos que agem sem anuência (direta ou indireta) da coletividade, impondo suas decisões pela força ou pela manipulação.
Uma segunda situação levantada por Bobbio que se presta como fator anímico para o cidadão se por em defesa da democracia é fato de que esse sistema de formação da vontade política permite a divergência e, via de consequência, o pluralismo. Não que na autocracia inexista divergência, mas ela é resolvida com a eliminação do elemento (ou até do sujeito) de discórdia.
Claro que uma decisão coletiva exige que a divergência seja superada, ainda mais quando os pontos de vista em confronto são antitéticos, tendem a se excluir. Vale a velha máxima: os bois têm de puxar para o mesmo lado, sob pena de não movimentar a carroça.
Pois na democracia, a divergência é resolvida pela aplicação da “regra da maioria”, leciona Bobbio. Diante de duas ou mais propostas em discussão, deve prevalecer aquela que for aceita pela maioria do corpo deliberativo. Essa forma de descarte da divergência adotada pela democracia também se constitui num valor em si, tendente a sensibilizar o cidadão pela causa democrática.
Bobbio lista mais dois ideais da democracia, a tolerância e a não violência. A tolerância surgiu como contraponto ao horror das guerras religiosas, como forma de evitá-las. Funciona como um antídoto ao fanatismo religioso.
A não violência, por sua vez, tem relação com a forma em que os cidadãos, na democracia, livram-se de seus governantes, quando não satisfeitos com eles. Não há necessidade de banho de sangue, basta não repetir o voto nos indesejados (há outras formas, conforme o caso: impedimento, suspensão de direitos políticos, etc.).
Outro ideal caro à democracia, na perspectiva de Bobbio, diz respeito à renovação gradual da sociedade por conta do livre debate de ideias e a modificação de mentalidades. Com efeito, em sociedades autoritárias, fechadas, as ideias e valores sociais não se modificam, há uma reprodução contínua, como se o tempo histórico estivesse congelado. Qualquer tentativa de avanço no pensamento gera desconfiança e é duramente reprimida pelos detentores do poder político e econômico. O debate de ideais é travado, os governantes agem em represália a quem abrir dissidência [4].
O ideal da irmandade também é mencionado por Bobbio. Se a história humana nada mais é do que um matadouro de gente (Hegel), a democracia é a esperança concreta de que cada cidadão possa reconhecer no outro a própria humanidade (e o destino comum dos humanos), um “irmão” que não deve ser abatido (ou explorado/manipulado), mesmo diante da disputa pelo poder ou da luta pela sobrevivência (para alguns não se trata mais de sobreviver, mas de acumular riquezas em quantia tal que sequer poderá dela usufruir em vida).
Esse conjunto de ideais é suficiente (ou deveria sê-lo), conforme escreveu Bobbio, para encorajar o cidadão na defesa do sistema democrático, mesmo quando deparado com a “democracia real”, que desnuda as promessa não cumpridas pela práxis democrática, entre os quais a revanche dos interesses, a manutenção do poder invisível, a persistência das oligarquias, a limitação de espaço democrático e o cidadão não educado para a cidadania.
Não há como nesse modesto post referir, mesmo que minimamente, todas essas promessas não resgatadas pelos governos democráticos e pela sociedade civil. Mas pelo menos uma delas merece destaque: a limitação de espaço para o exercício da democracia.
Bobbio denuncia que a democracia andou a passos largos até consolidar o sufrágio universal e depois estancou. Inicialmente votavam (e eram votados) somente proprietários do sexo masculino (os “machos burgueses”), depois o voto foi estendido aos trabalhadores, às mulheres, aos negros, às minorias, etc.
O intelectual italiano chama a atenção, em sua obra, para o fato de a democracia política demonstrar dificuldades em se transformar numa democracia social. O sufrágio universal conquistado tem a ver com consolidação da democracia política (democracia representativa: eleição de governantes ou escolha de políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado), mais isso é pouco. Não basta para a democracia saber “quantos votam” (já que, de certa forma, todos têm direito a votar), mas onde se vota, ou seja, quais os espaços em que o cidadão pode exercer esse direito.
Note-se que Bobbio alarga o conceito tradicional de cidadão. O termo cidadão não é uma veste que a pessoa usa exclusivamente nas suas relações com a “sociedade política” (o Estado). O trabalhador assalariado, o sindicalizado, o estudante, o pai/mãe de família etc. também é cidadão quando atuando naquele espaço em que exerce a função “privada” (de trabalhador, de estudante, de pai etc). Ai se tem uma “radicalidade” muito importante no seu pensamento!
Bobbio propõe uma espécie de democraciômetro (desculpem o neologismo forçado). Sustenta o pensador italiano que para medir o avanço da democracia não é suficiente verificar se a quantidade de votantes foi ampliada, mas se o número de locais em que o cidadão participa da construção das decisões que dizem respeito à coletividade foi ampliado (família, escola, clube social, fábrica, sindicato, etc.).
Claro que se olharmos à nossa volta, será fácil concordar com Bobbio: a promessa de ampliação contínua do espaço para o exercício da democracia (social ou participativa) está paralisado ou, no mínimo, funciona a passos lentos. E aqui no Brasil, desde o golpe, só se vê retrocessos!
Outras gerações lutaram por democracia no âmbito (da representação) governamental – e muita há para ser feito -, mas nas instituições da sociedade civil o que se vê, em termos gerais, são práticas não democráticas, de poder concentrado.
O desafio para os que acreditam na democracia participativa reside exatamente na luta cotidiana pela ampliação dos espaços para o exercício das práticas democráticas, mesmo que para isso tenham de enfrentar dura resistência daqueles que não aceitam partilhar a tomada de decisões que dizem respeito à coletividade (vez que isso contraria interesses particulares de toda ordem, principalmente econômicos e patrimoniais).
[1] Não como dogma ou cartilha, mas material para a reflexão.
[2] Bobbio proclamava-se “liberal-socialista”.
[3] Esse pensamento ainda é recorrente em muitas críticas à “crise das ideologias”. Segundo tais críticos ou se está alinhado com o socialismo real ou com o liberalismo. Qualquer visão que não se enquadre nesse “preconceito” é taxada como “falta de ideologia” ou “ideologia confusa”. Entretanto, o espectro político-ideológico é bem mais complexo e não pode ser definido na proposição “ou se é A ou se é Z”, já que entre o A e o Z passa todo um alfabeto de possibilidades.
[4] Não somente os governantes. O poder econômico e o poder midiático (grande mídia empresarial) também agem assim.
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