Vivemos tempos difíceis. O fascismo vai cavando espaços dentro das instituições fundamentais ao funcionamento do Estado Democrático de Direito. Por isso, é dever de cada um de nós que acreditamos na democracia reagir de forma enérgica, caso contrário logo ali adiante os fascistas estarão batendo à porta das nossas casas!
Partindo dessa premissa, vamos à situação remetida pelo título da postagem.
Imagino que todos já tenham conhecimento da violência a que foi submetida, pela atuação de agentes do Estado, a cidadã Janaína Aparecida Aquino, mulher pobre e socialmente excluída. Moradora de rua, drogadita e, depois, presidiária. Mas sua condição social e mesmo sua situação de conflito com a lei não têm o condão de diminuí-la como cidadã brasileira, titular de direitos constitucionalmente protegidos, dentre deles o da dignidade da pessoa humana!
No entanto, os direitos de Janaína foram violados!
Conforme noticiado pela mídia, na Comarca de Mococa (SP), agente do Ministério Público ajuizou ação civil pública pleiteando ao Estado-Juiz ordem para que Janaína fosse submetida ao procedimento de laqueadura das tubas uterinas (esterilização), ainda que sem a anuência da requerida.
A insensatez poderia ser estancada pela caneta do magistrado que presidia o processo. Que nada, o Estado-Juiz atendeu ao pedido, violando garantias fundamentais de Janaína ao ordenar que o procedimento fosse realizado, sem conceder à sua jurisdicionada qualquer oportunidade de defesa – não fez audiência, não nomeou um defensor (curador especial) e sequer teve a preocupação de verificar se naquele momento ela consentia com a drástica intervenção.
Assim, Janaína, em fevereiro deste ano, quando no hospital para dar à luz ao seu filho, foi submetida à laqueadura, por ordem judicial, sem que se tenha notícia de sua plena concordância. Aliás, consta nos autos do processo, que ela resistia ao procedimento de laqueadura tubária, conforme relatório informativo do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social do Município de Mococa.
O magistrado, em nota, defende-se alegando que Janaína havia, em outra oportunidade, dirigindo-se ao cartório da Vara e anuído com o procedimento. Mas o que se tem é que ela, posteriormente, negou-se a fazer os exames prévios à esterilização, o que demonstra o seu desejo de não mais realizar o procedimento.
Note-se que o agente do Ministério Público disse na petição de fl. 50 do processo (ver mais abaixo atalho para o inteiro teor dos autos) que em se tratando
“(…) de ação que visa à realização de cirurgia de esterilização compulsória, a resistência da requerida era esperada, motivo pelo qual foi pleiteado pelo Ministério Público e determinada liminarmente a realização de cirurgia de laqueadura, a qual deve ser feita mesmo contra a vontade da requerida. Caso contrário, nem seria necessário o ajuizamento de ação judicial”.
Por conta dessa novel petição, o juiz de piso decidiu, na fl. 51, intimar o Prefeito municipal para cumprir a liminar, no prazo de 48 horas, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00, limitada a R$ 100.000,00.
Como referido acima, Janaína foi esterilizada no parto. Ora, isso representa violação da Lei nº 9.263/96, porque o seu art. 10, § 2º, proíbe a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade.
Reproduzo, a seguir, o teor da Nota de Repúdio exarada pela ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURISTAS PELA DEMOCRACIA – ABJD, expressando repudio aos atos que culminaram na esterilização compulsória e eugênica de Janaína e na violação de seus direitos reprodutivos, sem contar a violação do seu direito ao devido processo legal.
A preocupação da ABJD reside na circunstância de que não se trata de um caso isolado, vez que se tem observado outros atos gravíssimos de violação de direitos praticados pelo sistema de justiça em relação a grupos ou pessoas socialmente marginalizados.
Para acessar cópia integral da ação civil pública pleiteando a esterilização de Janaína, clique aqui.
Segue a nota:
NOTA DE REPÚDIO
No artigo intitulado “Justiça, ainda que tardia”, publicado no jornal Folha de São Paulo, em 09/06/2018, Oscar Vilhena Vieira lançou luzes sobre uma situação deplorável que aflige um número considerável de mulheres em situação de vulnerabilidade social e econômica no Brasil.
Ao abordar os desdobramentos de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em face do Município de Mococa e de Janaína Aparecida Quirino (moradora de rua, usuária de drogas e álcool), que obteve determinação judicial para obrigar a esterilização forçada da referida mulher, o artigo nos permite refletir sobre o tratamento usualmente dispensado pelo nosso sistema de justiça à população carente e vulnerável do país.
No caso retratado, o representante do Ministério Público utilizou-se de um instrumento jurídico previsto para a defesa de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, para submeter uma mulher à esterilização contra a sua vontade, por motivos eugênicos, enunciados desde a petição inicial.
Ao nítido desvio de finalidade no manejo da Ação Civil Pública podem ser adicionadas a ilicitude do objeto da referida ação, haja vista que a esterilização compulsória é expressamente vedada na Lei 9.263/1996, e a violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Flagrantes ilegalidades, no entanto, não impediram que o Poder Judiciário concedesse a medida liminar para obrigar que o Município de Mococa realizasse o procedimento cirúrgico em Janaína, autorizando, inclusive, o internamento forçado para tanto.
O quadro se agrava quando, ao analisar a ação judicial, constata-se que à Janaína, referida desde a petição inicial como uma pessoa sem condições de discernimento, possivelmente incapaz, não foi garantido o mínimo direito à defesa, nem sequer a ser ouvida nos autos. Em suma, foi tratada como um objeto, uma coisa sobre a qual recaiu a tutela jurisdicional.
O recurso interposto pela Procuradoria do Município foi provido e o Acórdão publicado recentemente, quando Janaína já havia sido esterilizada compulsoriamente. Ao contrário do que indica o título proposto pelo professor da USP ao seu artigo, nem mesmo tardiamente pode-se falar que tenha havido justiça.
A história de Janaína não é atípica. Rotineiramente, cidadãs e cidadãos deste país, especialmente aqueles/as pertencentes a grupos sociais com grande debilidade econômica e/ou vulneráveis, são atingidos/as por atos arbitrários e ilegais praticados por integrantes do sistema de justiça. Contra eles, precisamos nos insurgir!
Assentamos nosso repúdio à conduta do Promotor de Justiça Frederico Liserre Barruffini, autor da petição inicial, e do Juiz de Direito Djalma Moreira Gomes Júnior, que proferiu a sentença que acarretou a mutilação física de uma mulher, com a esterilização forçada, em situação de vulnerabilidade por razões eugênicas.
Compreendendo que a mera declaração de repúdio não possui o alcance necessário a combater abusos de poder desta natureza, informamos, desde já, que ingressaremos com as respectivas representações no Conselho Nacional de Justiça e no Conselho Nacional do Ministério Público, pretendendo que as devidas responsabilidades e sanções sejam apuradas.
SÃO PAULO, 10 de junho de 2018
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURISTAS PELA DEMOCRACIA – ABJD