BILHETES

NOTAS SOBRE POLÍTICA E CIDADANIA

Getúlio Vargas criou a Petrobrás

Num grupo virtual de discussão política, Maria Bettanin lembrou que ontem foi o aniversário de morte do Getúlio Vargas (24AGO1954). E conclamou fosse escrito algo sobre o estadista nascido em São Borja (RS)

Como ninguém se aventurou, aceitei a missão. Mas só para fazer algumas considerações gerais, lincando o primeiro governo de Getúlio (fases do Provisório, do Constitucionalista e do Estado Novo) com os dias de hoje.

Indiscutivelmente, Getúlio teve papel importante para a consolidação do capitalismo no Brasil, trazendo desenvolvimento econômico e social.

Calma, pessoal, não estou idealizando a formação capitalista. Não capitulei!

Ocorre que a estrutura econômica brasileira, naqueles idos, tinha um pé fincado no feudalismo – e até no escravagismo.

A República Velha, que sucedeu o Império, foi dominada, principalmente, pelos interesses das oligarquias cafeeiras, de base regional. A economia brasileira dependia basicamente da exportação de produtos com baixo valor agregado (commodities agrícolas), vendidos ao exterior sem nenhum ou com baixo processamento.

Portanto, não havia nenhuma preocupação com o mercado externo, com as bocas e estômagos dos brasileiros.

As oligarquias não pensavam o desenvolvimento do Brasil (industrialização, urbanização, acesso à educação etc). Não havia uma meta de gerar empregos e renda. O empenho das elites era para o enriquecimento próprio. (Estou falando de 1930 ou de 2021?)

Toda ação governamental no campo da economia, como a emissão de papel-moeda – que acabava gerando inflação e aumento da dívida pública -, girava em torno dos interesses das oligarquias regionais.

Foi-se o Império, veio a República (um golpe militar). Mas a economia era essencialmente a mesma.

Por isso, os historiadores afirmam que antes do Estado Novo de Getúlio, não havia um projeto de nação.

As elites, por assim dizer, atrasavam o capitalismo.

Não há capitalismo sem industrialização. Tem de ter a fábrica, o assalariado e a mais valia.

Os avanços da legislação trabalhista promovidos por Getúlio, por exemplo, ocorrem dentro desse contexto de azeitamento das relações capitalistas (capital e trabalho), acoplado a um projeto nacional-desenvolvimentista. Vale lembrar que Getúlio foi formado no berço do positivismo castilhista.

Então, foi um “passo adiante”!

Falei das flores, agora vou falar dos espinhos, fazendo uma rápida ligação com o momento político atual.

Todos acompanham a escalada golpista e autoritária do Bolsonaro. Diante de uma provável derrota eleitoral, o bolsonarismo passa a fortalecer teorias conspiratórias, questionando previamente o processo eleitoral e elegendo inimigos fantasmagóricos.

Um dos inimigos imaginários é o comunismo. Funcionou em 1964, mobilizou as Forças Armadas, as elites e a classe média.

Mas não é de agora, nem de 64, que as Forças Armadas travam uma batalha imaginária contra o “fantasma do comunismo”. E não é só a extrema-direita que usa a bandeira da “ameaça vermelha” para chegar ou manter-se no poder.

Em 1922, foi criado o Partido Comunista Brasileiro. Em 1935, com o propósito de combater o fascismo, os comunistas brasileiros organizaram a Aliança Nacional Libertadora (ALN). Na Europa, quem estavam enfrentado os fascistas eram exatamente os comunistas.

Útil lembrar que no Brasil havia um núcleo fascista, representado pela Ação Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado.

Pois o Getúlio, diante da “ameaça comunista”, declarou ilegal a ANL. Como resposta, o movimento, chefiado por Prestes, deflagrou um lavante contra o governo de Getúlio, a Intentona Comunista, facilmente derrotada pelas Forças Armadas. Isso em 1935.

Olga Benário e Elisa Berger, militantes comunistas, foram entregues a Gestapo, a polícia nazista. Outros militantes de esquerda foram presos e torturados.

Em 1937, ano pré-eleitoral, os integralistas de Plínio Salgado criaram uma fake news. Forjaram o Plano Cohen, segundo o qual os comunistas planejavam tomar o poder, com apoio da Internacional Comunista e da União Soviética.

Tudo era uma grande mentira, com o objetivo que de criar instabilidade política, conforme foi revelado em 1945 pelo General Góis Monteiro!

A “ameaça comunista” foi a deixa para Getúlio. Em setembro de 1937, o governo divulgou na mídia o Plano Cohen. Em novembro daquele ano, com o apoio das Forças Armadas (que sabiam da farsa) e da classe média, Getúlio derrubou a Constituição de 1934 e impôs a ditadura do Estado Novo. Um autogolpe justificado na ameça comunista.

Aliás, Plínio “armou e se deu mal”. O fascista sabia do plano de Getúlio, esse sim verdadeiro, de frustrar as eleições de 1938. Plínio apoiou o golpe do Estado Novo, na expectativa de assumir o Ministério da Educação no novo governo e fincar as bases do integralismo na estrutura governamental.

Vã esperança, Getúlio dissolveu a Ação Integralista Brasileira (na verdade, todos os partidos políticos foram extintos). Os integralistas tentaram derrubar o Governo Vargas, Plínio foi preso e exilando em Portugal.

Mas se faça justiça: antes Getúlio do que o fascista Plínio, não é mesmo?

E há quem diga que se Getúlio não desse o autogolpe, as Forças Armadas fariam o seu próprio golpe – e contra Getúlio.

P.S.: Texto sem correção. Deixo essa tarefa para os leitores, por favor!

É com tristeza que recebo a notícia do falecimento do ex-vereador Raul Alves de Melo.

Lembro que em 1994, quando comecei a frequentar o curso de Ciências Jurídicas e Sociais da FADISA (depois, IESA), fui designado pela direção municipal do PT, a pedido do mestre Flávio Bettanin, para assessorar a bancada de vereadores do partido, então composta pelo Raul e pelo João Hélio Pês.

Com essa experiência, foi possível associar o conhecimento acadêmico com a “prática”, vez que uma das minhas tarefas era auxiliar os vereadores no processo legislativo, convertendo em anteprojetos de lei e proposições o resultado de reuniões e debates da bancada com a comunidade.

Foi marcante a sua atuação, naquele ano, na Comissão de Direitos Humanos, um trabalho de fôlego denunciando a violência estatal contra os economicamente deserdados, enfrentamento que recebeu reconhecimento da comissão similar da Assembleia Legislativa!

Por isso, trabalhar com o Raul foi uma oportunidade bem-sucedida, uma ocasião de aperfeiçoamento técnico-jurídico e político.

No curso da convivência política, Raul e eu divergimos em muitos pontos e em diversas oportunidades (em outras tantas ocasiões, concordamos).

No entanto, as diferentes concepções ideológicas que defendíamos não causaram nenhuma ruptura na nossa relação pessoal, que sempre foi respeitosa.

Pêsames aos familiares e amigos.

Em crônica veiculada no site ultraconservador “Contra fatos!”, é dito que integrantes de um comitê, denominado Grupo Científico de Influenza Pandêmica sobre Comportamento, teria encorajado o governo que assessora a usar o medo como mecanismo para controlar o comportamento das pessoas durante a pandemia da Covid-19. Arrependidos pelo conselho, os integrantes do comitê publicaram um livro onde admitem que foram antiéticos e totalitários. Ver clicando aqui!

A matéria – se é que dá para chamar de matéria – não elucida muito sobre o livro e sequer refere em que pais o referido comitê atua – e, enfim, qual governo assessora. Também não são esclarecidas plenamente quais foram as tais práticas totalitárias e contrárias ética que empregaram e que levaram a uma política de “ameaças pessoais” por parte do governo assessorado. Mais parece um fake news!

Caso essas práticas supostamente denunciadas consistiram em advertir a população sobre as consequências da Covid-19, tornando público o número de mortes e hospitalizações, a falta de leitos, UTIs, oxigênio, medicamentos para intubação, etc, isso não é totalitarismo, mas obrigação de um governo minimamente democrático que se preocupada com as condições sanitárias da população. O que não é caso do governo Bolsonaro!

Ora, as medidas em menção não se tratam de “ameaça pessoal”, termo utilizado na matéria, mas de transparência e de informação imprescindível para enfrentar uma pandemia. Quem efetivamente ameaça a vida das pessoas é o coronavírus, são as práticas negligentes de contenção da propagação da Covid-19 e a falta de uma política pública nacional de combate a pandemia desde o início.

Olha, sinto-me ameaçado pessoalmente – e tenho um sentimento de ameaça à saúde e à vida de minha esposa e filho, de parentes, amigos, colegas de trabalho e sociedade em geral – pelo quase meio milhão mortes decorrentes da Covid-19 aqui no Brasil e pelo atraso na imunização.

Fui ameaçado pessoalmente – eu, meus familiares, colegas de trabalho, amigos, vizinhos, etc – quando o presidente Bolsonaro, com base na sua ignorância sanitária, rejeitou vacinas que lhe foram oferecidas e apostou na cloroquina, cuja eficácia não tem comprovação científica. Aliás, a própria indústria que produz o medicamento diz que não se deve usar cloroquina para prevenir ou combater a Covid-19!

O pessoal que assessora o Bolsonaro, o tal Ministério da Saúde paralelo, até propôs mudar a bula da cloroquina, incluindo recomendação de uso para a Covid-19. Isso sim dá medo!

O ex-ministro da Saúde, o General Pazuello, disse hoje à CPI da Covid-19 que a cloroquina é antiviral! Tamanha ignorância é que me coloca em pânico!

Veiculei na minha linha do tempo no Facebook uma matéria do El País que noticia decisão judicial, exarada em primeiro grau de jurisdição, autorizando o Sindicato dos Servidores da Assembleia Legislativa do Estado de MG, o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de SP e a Associação Brasiliense das Agências de Turismo Receptivo a importarem vacinas para a imunização de seus associados e respectivos familiares sem a necessidade de realizar doação de 50% ao SUS, exigência do art. 2º da Lei federal nº 14.125/21.

Conforme conta na decisão, foi reconhecida a inconstitucionalidade parcial do art. 2, da Lei federal nº 14.125/21, afastando a expressão “desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde” e total do §1º, que prevê que “após o término da imunização dos grupos prioritários, as pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita”.

Se a lei já era ruim, a decisão em questão, salvo melhor entendimento, não melhora o cenário em nada.

Com o argumento de que é necessário permitir a participação da iniciativa privada no combate à pandemia, na verdade a decisão deu sinal verde para furar fila da vacinação contra a Covid-19!

O amigo José Lauenstein contra-argumentou, no Face, que quem “(…) paga fica com o produto…este é o correto (…)”.

Numa economia de mercado, sem a presença de um Estado de Bem-estar Social, o raciocínio não merece qualquer reparo. Nem a lei, tampouco a decisão judicial.

Mas não pode ser assim. Ou pelo menos não deveria ser assim. Esse entendimento de laissez faire, laissez aller, laissez passer não contribui para o enfretamento da pandemia. Ignora as condições reais e os valores construídos com o processo civilizatório, falo aqui dos direitos humanos de 2ª e 3ª geração, inscritos na Constituição federal de 88.

A realidade não conhecida – a condição objetiva inafastável –  a que me refiro é singela: os imunizantes são escassos.

Prevalecendo, por hipótese, a regra de ouro do capitalismo de que se a demanda é maior do que a oferta, os preços da mercadoria tem de aumentar, aí iremos rumar para a barbárie!

Por isso, a vacina contra a Covid-19 não pode ser reduzida a um produto de comércio, uma mercadoria.

Em saúde pública, não há justa causa para tirar dos hipossuficientes a título de disponibilizar para quem tem condições financeiras e meios de acesso superiores!

Nesse contexto, mais do que nunca a visão individualista e utilitarista tem de ser substituída pela solidariedade e pelo manejo racional dos recursos disponíveis.

As vacinas, já que são quantitativamente insuficientes, devem ser direcionadas aos grupos segundo a ordem de vacinação do plano nacional de combate à Convid-19 – e não para quem tem condições de pagá-las ou dispõe de meios de acesso ao imunizante que não estão assegurados de forma universal aos demais (falo da importação).

Por isso, a norma aprovada pelo Congresso Nacional, ainda que prevendo doação ao SUS e compras somente após a vacinação dos grupos prioritários, e a decisão judicial em liça, boicotam, cada qual ao seu modo, o plano de vacinação, são nocivas ao combate da pandemia e tendem a minar a coesão do tecido social, já que permitem em larga medida uma competição pelo imunizante.

Nossa CF recepcionou os direitos fundamentais de 2ª geração, que são os direitos sociais, econômicos e culturais, cuja titularidade é coletiva e que exigem atuação do Estado. Do mesmo modo, os direitos fundamentais de 3ª geração, ligados aos valores da fraternidade e da solidariedade – direitos transindividuais destinados à proteção do gênero humano – também foram albergados pelo texto constitucional. Por que contorná-los?

As concepções que embasam norma e ato judicial que aqui critico tem esteio nos valores do individualismo e da competição. O que precisamos agora é o sentido coletivo, fortalecendo laços de solidariedade e de cooperação. E isso está lá na Constituição, não se trata de invenção minha!

Ou será que ainda não foram compreendidas as razões de estarmos num buraco sem fundo?

Por Fagner Garcia Vicente


Esta foto foi compartilhada (no Facebook) por Amadeu de Almeida Weinmann e retrata um desfile celebrando o 20 de setembro em Ijuí, no ano de 1940. A imagem é particularmente interessante por três motivos: (1) é anterior à fundação do 35 CTG, marco inicial do movimento tradicionalista gaúcho; (2) nela predominam lenços brancos e (3) os cavaleiros portam bandeiras do Brasil ao invés das do RGS.

Esses três elementos vão contra boa parte do senso comum a respeito do tradicionalismo – seja dos que o defendem, seja dos que o criticam. Por isso, para quem se interessa pelo tema, vale a pena resgatar, mesmo que de forma grosseira, um pouco da história.


A celebração do 20 de setembro não começou, como se acredita, em 1947, quando um grupo de estudantes do colégio Julinho, em PoA, liderados por Paixão Côrtes, fez sua primeira vigília da chama da pátria – tornando-a chama crioula. Já existia no final do século XIX, entre positivistas republicanos, que buscavam na Revolução Farroupilha um “mito fundador” para seu próprio movimento revolucionário. “Clube 20 de setembro” era o nome da organização que sediava os estudos de Júlio de Castilhos e Assis Brasil na faculdade de Direito de São Paulo. O Major Cezimbra Jacques, intelectual, folclorista santa-mariense, foi um dos precursores do que se pode chamar de “tradicionalismo” – a busca de uma identidade gaúcha calcada na reinterpretação de determinados eventos históricos – além de fundador do Grêmio Gaúcho, em 1889.

Ou seja, inicialmente, o nosso identitarismo esteve banhado no positivismo chimango, oposto ao ideal das oligarquias agrárias maragatas (daí o lenço branco predominante, mesmo em 1940, quando essa divisão ideológica tinha perdido grande parte do seu sentido, considerando a “unificação” operada por Vargas). Manuelito de Ornellas, um dos intelectuais que mais influenciou o tradicionalismo gaúcho na sua alvorada (fez, inclusive, o discurso de abertura do I Congresso do MTG, em 1954), era redator-chefe do jornal oficial do Partido Republicano Riograndense (PRR) e, em sua obra sociológica, defendia a concepção platina do gaucho (este tipo popular, mestiço, sem terra nem paradeiro, que abundava nos pampas), oposta à concepção elitista do gaúcho estancieiro, “patrão”.

Mesmo Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, principais representantes da geração fundadora do MTG, seguiam essa linha. Em diversas entrevistas, Paixão relata que a preocupação a movê-los, ao menos inicialmente, era a invasão da cultura estadunidense, que se espalhava pelo mundo no pós-guerra e ameaçava de esquecimento manifestações culturais genuínas dos povos. Durante anos, a dupla se dedicou a documentar essas expressões diversas, registrando e entendendo exatamente sua pluralidade. Lessa, talvez o maior intelectual do tradicionalismo nascente, deixava clara, na tese apresentada no I Congresso, sua motivação política não-elitista, fortemente influenciada pela leitura de Cyro Martins, autor da “trilogia do gaúcho a pé”, e da escola sociológica de Chicago, que via na desintegração dos laços sociais as origens das mazelas urbanas.

Não que a tese de Barbosa Lessa fosse um libelo revolucionário. Como grande parte do Nativismo, até hoje, identificava as consequências sociais desagregadoras do avanço do capital, mas não chegava a denunciar as causas. Nesse limbo, se prestava a uma interpretação conservadora, que via a solução na manutenção de um modelo social arcaico. Porém, não respaldava, em absoluto, o resgate do ideário das oligarquias rurais, que viria a caracterizar o MTG nas décadas seguintes.

A questão é que houve o regresso do lenço colorado.

Os movimentos culturais interagem dialeticamente com seu contexto socioeconômico, sendo engendrados por este e influenciando seus rumos. De 1954, ano do primeiro congresso dos tradicionalistas, a 1966, quando o MTG se tornou uma organização oficial, sua linha norteadora (e, quem sabe, o próprio pensamento de suas lideranças) passou a estar sintonizada com a ideologia política que tomava o governo do país. O processo de institucionalização é parte dessa guinada reacionária – são leis da Ditadura que tornam o folclore e a semana farroupilha oficiais. No apagão cultural gerado pela repressão, os CTGs se tornaram uma das poucas vozes no meio – repetindo, é claro, o discurso dominante. Uma entidade pública chega a ser criada (o IGTF) para difundir, por meio do folclorismo gaúcho, o discurso governamental.

É nesse processo que toda a pluralidade cultuada no início é convertida na construção dogmática de um modelo mítico e a-histórico de gaúcho e sociedade gaúcha – imitação infiel da estância dos invasores portugueses. Esse mesmo processo resgata o ideário vencido em 1893, vendendo-o tanto como ideal farroupilha, quanto como matriz do identitarismo gaúcho, predominante, ainda hoje, na maioria das manifestações tradicionalistas. Para os militares americanófilos da década de 60, o tradicionalismo não reagia à imposição cultural estadunidense, mas ao suposto centralismo do Estado Novo varguista. O olhar crítico para a desintegração da estrutura social vira a exaltação ufanista de um passado idealizado. A imagem mítica do gaucho livre nos campos, é substituída pela rigorosa hierarquia estancieira, no topo da qual está o Patrão. A pilcha, tão eivada de regras, assemelha-se à farda. Sob a desculpa da “fidedignidade”, as representações artísticas são maneadas num formalismo tipicamente militar.

Contudo – e, para mim, isso é o essencial –, o uso que as oligarquias, durante e depois da ditadura, fizeram da “cultura gaúcha”, manipulada por uma organização que se arvorou em sua proprietária, não torna a cultura popular gaúcha “artificial”, uma “invenção do MTG”, ou mesmo uma mera mistificação com fins reacionários. Ir nessa linha, como grande parte da esquerda guasca tem ido, só revela o distanciamento da realidade do povo, o desconhecimento da importância que o imaginário sintetizado na busca de uma “identidade” tem para os povos – inclusive para sua autonomia.

Nossa cultura é rica e plural, como sabiam Paixão e Lessa na década de 40 – embora possam ter esquecido disso depois.

Por José Orlando Schäfer

O humanismo é um pensamento filosófico que tem o ser humano no seu centro, que valoriza o ser humano acima de tudo, pois o entende como um ser portador da Dignidade. As ideias de Democracia, de Estado de Direito e de Dignidade humana são ínsitas ao pensamento humanista.

Mas, vou dizendo de saída: eu não tenho nenhum tipo de ilusão quanto ao ser humano! E não falo isso com qualquer sentimento de decepção. Não mesmo! Quero dizer, apenas, que aceito o ser humano tal qual ele é. Até me esforço muito para vê-lo assim: um ser que pela sua própria condição, vivencia constantemente o conflito entre opostos, na linha do que pensava Heráclito. E isso ocorre, seja no plano individual, seja no plano coletivo. Dentro do Homem, pulsam muitas forças! Forças positivas, que afirmam a vida e forças negativas, que contra ela conspiram. Isso qualquer um pode sentir e enxergar. Por isso, o Homem, pra mim, é um ser individual e social, de corpo e de alma, de razão e de emoção, de alegria e de tristeza, de determinações e indeterminações, capaz de realizar o bem e o mal. O filósofo Espinosa me ajudou muito a compreender o Homem: para ele o homem é constituído por emoções que combatem entre si, fato esse que não pode ser considerado um vício, mas sim uma condição do próprio ser humano com a qual devemos dialogar. Legal, não acham?

Ora, essas forças, que atingem o Homem, são reais, não nos iludamos! No coração do homem, habitam muitas forças. Nesse diapasão, a coisa mais sensata a ser feita é administrá-las. O conflito que caracteriza o ser humano deve ser, constantemente, administrado. Se não for administrado, ou se for mal administrado, o caminho para o caos e para a barbárie se abre: pode levar a retrocessos, ao retorno a formas arcaicas, retrógradas, que podem atentar contra a vida.

Não podemos nos iludir, pois enxergamos isso no plano individual e no plano coletivo. No plano coletivo, vimos, num passado não tão longínquo, as formas arcaicas ascenderem através dos regimes colonialistas de genocídios contra as populações nativas, da escravidão, do fascismo, do nazismo, do stalinismo e de muitas outras formas de organização política que resultaram em violação ao ser humano. Quanta barbárie já vimos! O ser humano é capaz de muitas coisas, não olvidemos!

O que precisamos saber é que essas forças são reais. Elas existem em potencial em todos os tempos e lugares.

Infelizmente, no Brasil estamos assistindo hoje a ascensão de um movimento que defende, claramente, e sem qualquer tipo de pudor ou rodeio, um sistema arcaico, discriminatório, baseado no ódio, na exclusão e no desprezo à vida. Isso é claro, e não pode ser ignorado. Não pode ser desprezado! Desprezá-lo é, antes de tudo, um ato de irresponsabilidade!

Ora, um fato social dessa envergadura, desse tamanho, exige, além de muita atenção, uma postura nova de todos aqueles que têm algum compromisso com o humanismo. No caso, penso que uma postura nova exige a superação de velhas concepções sobre a política e a sociedade e que permita a construção de novas possibilidades e alianças, e que implique no abandono de interesses particulares (de pessoas e entidades) para possibilitar a construção de um grande projeto programático de afirmação dos valores humanistas no Brasil.

Aliás, diante desse fenômeno, que não é isolado, mas que se integra ao atual estágio evolutivo do capitalismo fundado na revolução tecnológica, não é mais possível a defesa de interesses particulares ou segmentários. Precisamos partir para a defesa de interesses universais, que digam respeito a defesa da vida. No caso, defender a vida significa defender a Democracia no seu sentido moderno, defender a pluralidade, defender o meio ambiente, defender uma revolução tecnológica sob controle social, defender a dignidade humana de forma radical e em todas as suas dimensões, defender o valor trabalho, significa, enfim, defender a Constituição Federal que retrata o melhor projeto humanitário que a sociedade brasileira foi capaz de construir até hoje.

Então, este não é o momento de maniqueísmos, de construção de projetos pessoais e de projetos particulares.

Pelo contrário, este é o momento do desprendimento e da união de todos humanistas em torno de um projeto que, não apenas se oponha a ascensão do fascismo no Brasil, mas que, sim, fundamentalmente, aponte para a construção, aqui, de uma sociedade justa, fraterna e solidária e que tenha o humanismo e a Constituição Federal como o seu centro.

Este é o momento em que devem aparecer as grandes lideranças, lideranças que sejam capazes de abrir mão de interesses pessoais para possibilitar a construção de um grande acordo nacional que afirme a ideia de Democracia e afaste o fantasma do retrocesso.

Acredito que o prioritário, no atual momento, é a construção de um programa que represente um consenso entre as diferentes forças sociais e que têm no humanismo o seu centro! Um programa que afirme a dignidade humana, a Democracia e a Constituição Federal.

Neste contexto, me parece que é secundário o nome de quem vai liderar a execução desse programa humanista! Não é hora para a afirmação de projetos pessoais. O que precisamos, agora, é um grande programa social que possa resultar, não apenas na eleição de um presidente da república, como, também, na eleição de Deputados e Senadores e na participação efetiva da sociedade. Qualquer coisa fora disso é pura aventura.

Precisamos, agora, de um grande programa nacional, que tenha a Constituição Federal como o seu centro e que afirme aqui a ideia de humanismo.

O título é extenso para uma crônica política, dirão. Mais parece a exposição de uma tese. Acontece que o tema abordado faz essa exigência. A conferir abaixo.

Segundo Michel Foucault, a biopolítica (política sobre a vida, momento em que o biológico passa a refletir no político – acrescento: e quando não?) superou os modelos tradicionais de controle utilizados na antiguidade e no medievo, baseados na formulação de ameaças de morte e castigos endereçados ao indivíduo (poder puramente disciplinar, que dava mais ênfase à punição do que à promoção). Via biopolítica, pelo emprego do(s) biopoder(es), que tem capilaridade nas instituições (não é centrado num soberano), grandes populações passaram a ser reguladas.

O biopoder, na perspectiva do filósofo francês, é estruturado por dispositivos e tecnologias que administram e controlam as populações por meio de técnicas, conhecimento e instituições. Há uma simbiose entre o poder disciplinar e a biopolítica, que acaba por fomentar uma dinâmica de reforço mútuo.

Foucault ensina que pela biopolítica é possível, no Estado moderno, que os governantes embasem e fortaleçam suas decisões, influenciando as pessoas, não somente pela imposição da disciplina, mas pelo exercício do biopoder, o que é feito, por exemplo, pela execução de políticas públicas (baseadas em conhecimento científico) que defendem a vida e, ainda, miram no seu desenvolvimento e maximização.

O sistema de direitos e deveres, por exemplo, é implementado pelos poderes de Estado e aceito pela população porque os governantes, parlamentares e magistrados dominam técnicas e instrumentos (biopoderes) que justificam as decisões tomadas. Ocorre que a sociedade vê nestas ações a proteção às suas vidas. Mas nisso há um cálculo!

Para Foucault, a formação social e econômica capitalista exige para o seu funcionamento a inserção controlada (pela disciplina) dos corpos no aparelho de produção, mas também reclama um necessário ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos (pelo biopoder). Os corpos que produzem precisam ser dóceis, controlados, mas as forças e aptidões dos trabalhadores devem ser ampliadas ao máximo.

Assim, no capitalismo, conforme a ótica de Foucault, o biopoder é aplicado para ajustar a acumulação dos homens ao do capital e a articular o crescimento (minimante saudável) dos grupos humanos à expansão das forças produtivas.

Na formação social e econômica capitalista, na linha de Foucault, a vida humana passa a ser aproveitada pelo Estado e pelas instituições como elemento de poder. O propósito é maximizar a vida humana para que ela seja produtiva, porque somente assim vai ser útil ao acúmulo capitalista. Não se trata de uma opção ética ou empática (embora o discurso de justificação expresse esses elementos), mas um cálculo para produzir e acumular riqueza.

De certo modo, isso explica porque o capitalismo europeu, diante da pandemia da Covid-19, não abandou a ciência e correu produzir imunizantes. Trata-se de uma biopolítica necessária à manutenção da produtividade. Sem os corpos saudáveis dos trabalhadores e dos consumidores, não há trabalho humano, as mercadorias não são produzidas, não circulam e não são consumidas. Embora parte da produção seja automatizada, a força de trabalho ainda é necessária para a produção, elemento sem o qual a economia capitalista não se movimenta.

Mas se a formação social e econômica capitalista depende da saúde de trabalhadores e consumidores (e também dos capitalistas!), como explicar que Bolsonaro (e Trump, até o encerramento do seu mandato, por exemplo) desconsidera o conhecimento cientifico para combater a pandemia, opção que provocou e provoca a morte de milhares de brasileiros?

A resposta pode ser encontrada na obra “Necropolítica” (2011), do professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, o filósofo Achille Mbembe.

Para Mbembe, a necropolítica, espécie de biopolítica, é o emprego do biopoder pelo Estado, utilizando técnicas para a eleição de quem pode viver e de quem deve morrer, que são aceitas por frações consideráveis da sociedade, completamente controladas.

Nessa situação, a morte passa a ser aceitável, “vida que segue” (para os que não morrem!). Mas na necropolítica, diz Mbembe, nem toda morte é aceitável, somente são matáveis quem já se encontra em risco de morrer, no caso, uma determina “raça” que, diante das mazelas econômicas e sociais, encontra-se em situação de risco permanente.

Leciona Mbembe que o Estado, a quem compete estabelecer o limite entre os direitos, a violência e a morte, com a necropolítica adota um discurso e uma ação (ou omissão) para criar zonas de morte, citando como exemplo mais recentes Kosovo e Palestina.

No governo Bolsonaro, indiscutivelmente a necropolítica é uma apavorante realidade, as “zonas de morte” pululam, e tem entre os seus fundamentos não somente o racismo e a eugenia, mas também o darwinismo social vulgar (pobre xará, incompreendido e mal usado), vetores que embalam o ultraliberismo e o conservadorismo da direita brasileira. Para eles, os brasileiros de melhor “raça”, com a genética dos “bem nascidos” e mais aptos (corpo atlético ou homens de bem com méritos) viverão e os demais, descartáveis, perecerão. O discurso de combate à corrupção, de retenção do marxismo cultural, de fortalecimento do patriotismo e de apoio aos valores da família são as expressões finais das técnicas de biopoder empregadas pelo bolsonarismo, que disciplinam e freiam a reação popular, inclusive daqueles que sofrem diretamente os efeitos da necropolítica.

Entendo que a necropolítica a que se refere o professor Mbembe não atrapalha o desenvolvimento do capitalismo tupiniquim, desde que ministrada em pequenas gotas. No entanto, com a pandemia totalmente fora de controle nestes últimos dias, parcelas consideráveis da classe dominante passaram a temer a necropolítica intensiva do bolsonarismo, preferindo uma biopolítica diversa, capaz de garantir a saúde básica dos corpos de quem tem de produzir (mas sem alterar a dinâmica atual da mais valia).

Nesse contexto, encontro uma das razões da devolução dos direitos políticos ao Lula (evidente que existem outros fatores, de ordem processual e jurídica – a incompetência do Juízo -, além de contradições internas dentro do Poder Judiciário, entre adeptos da lava jato e não adeptos). Trata-se de uma biopolítica de fração do Estado, no interesse (e a mando indireto) dos capitalistas, com o propósito de controlar a necropolítica bolsonarista (de outra fração do Estado), vez que no atual momento (de corpos que morrem ou que adoecem) mais prejudica do que ajuda no processo de acumulação necessária ao funcionamento do capitalismo, além do que, a longo prazo, a função disciplinar pode ser rompida e a população entrar em descontrole, rebelando-se.

Notem que o resultado superou expectativas. Lula voltando como “jogador” acuou Bolsonaro! Bolsa e dólar reagiram bem. E agora tem a pressão do “centrão” para alterar a conduta governamental diante da pandemia, inclusive com a defesa da demissão do atual ministro da Saúde, a ser substituído por pessoa ligada à área e simpática à ciência.

Logicamente que, mais adiante, a classe dominante vai investir contra o Lula, utilizando dos instrumentos disponíveis, porque não é do seu interesse que o petista – e as forças políticas e populares que com ele atualmente se relacionam -, chegue à presidência da República e passe a ditar/disputar biopolíticas que confrontem a alta burguesia.

Flávio Bettanin

Amigo Charles, agradeço a deferência de me colocar essa interessante matéria e me convidar para debatermos.

Tendo recebido a primeira dose da vacina, recobro o ânimo para expor algumas ideias, sabendo sempre que resultam de uma pulsão que me leva a escrever, mesmo ciente da superficialidade dos conteúdos pelos limites de minha sabedoria.

Duas questões logo se apresentam, existindo muito mais se fizermos leitura de toda Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: qual o conceito de filosofia adotado pelo autor.  E, outro, o que Marx quis dizer afirmando: – A filosofia não pode se realizar sem a extinção do proletariado, nem o proletariado pode ser abolido sem a realização da filosofia.

Entendo que, para dar resposta a estas questões, impõe-se que se estabeleça a cronologia das obras de Marx para acompanhar a evolução de seu pensar. Buscar o estágio dessa evolução, pois nele há de se dar respostas. De outra forma estaríamos dando nossa opinião de hoje sobre classes sociais, proletariado, história etc. e não o que ele pensava sobre essas categorias no momento que escrevia. Escrita em 1843, se atentarmos pelo que o próprio Marx diz sobre a evolução de seu pensamento, estava num momento de confissão de carências porque lhe faltavam bases para o que buscava.

Depois de fazer a crítica sobre religião, escreve nessa Introdução: “Assim, superada a crença no que está além da verdade, a missão da história consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiro objetivo, uma vez que se desmascarou a forma da santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está a serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação em suas formas não santificadas”.

Ele diz sobre o caminho de suas investigações filosóficas e históricas no Prefácio da Crítica à Economia Política: “O meu estudo universitário foi o da jurisprudência, o qual no entanto só prossegui como disciplina subordinada a par de filosofia e história. No ano de 1842-43, como redator da Rheinische Zeitung [N174], vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais”.

Entendo possível já afirmar, quase repetindo os seus dizeres, que, quando escreve para Marx a filosofia é exercício de ideias postas na missão de revelar a verdade que nos circunda, removendo a autoalienação, orientando o curso da história. Sendo a verdade revelada e concretizada, ela desapareceria por não ter mais objeto. A filosofia é eliminada pelo próprio fato de se realizar.

Na leitura da Introdução me faz deduzir que, para Marx, desse exercício de ideias resulta uma teoria: “A teoria só se realiza numa nação na medida que é a realização de suas necessidades… Não basta que o pensamento estimule sua realização; é necessário que esta mesma realidade estimule o pensamento”.

Faz excursões sobre o desenvolvimento dos países capitalistas, comparando-os com o da Alemanha e vai percebendo no exercício filosófico conexo a importância dos “interesses materiais”, a realidade da época.

Naqueles países, Inglaterra e França, descobre as classes em conflito e vê no proletariado a classe que tem a missão de superar esse conflito transformando seus interesses particulares em universais.

Este é, a meu ver, o Marx de 1843. Inteligível, pois o que Marx de 1843 quis dizer, a filosofia e proletariado, a teoria e a prática, realizando a síntese, conquistando o objetivo de revelar a verdade real, colocariam a sociedade no reino da liberdade, fenecendo ambos. Estágio de seu pensamento evidentemente insuficiente, mas a leitura da parte final da Introdução permite que se diga em que direção seus olhos, mente e coração de dirigiam: “Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo gaulês anunciará o dia da ressureição da Alemanha”.

O canto do galo gaulês cantou nas barricadas de Paris em fevereiro de 1848 quando burgueses, proletários, camponeses, estudantes, intelectuais uniram-se para derrubar a monarquia instituindo a República, mas que em junho daquele mesmo ano, banidos os proletários, foram afogados num mar de sangue, seguindo os acontecimentos até 1851 para dar na farsa de Luis Bonaparte, o Napoleão III.

É importante constatar que Marx, nesse interregno, entre a Introdução em comento e os acontecimentos de 1848 a 1851, avançou de maneira importante nos seus estudos e formulações teóricas, registradas em Manuscritos Econômicos e Filosóficos. É o Marx em outro patamar teórico que escreve sobre o cantar do galo gaulês, tragédia e farsa, em O 18 de BRUMÁRIO DE LUÍS BONAPARTE.

Obra da artista americana Harmonia Rosales
“(…) Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: Procuro Deus! Procuro Deus! – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma enorme gargalhada… Para onde foi Deus?…já lhes direi! Nós o matamos – você e eu. Somos todos assassinos! Mas como fizemos isso? … Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus?… Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”
– Nietzsche, Gaia Ciência, aforismo 125

Na transcrição acima, que serviu de inspiração para o título desta crônica, Nietzsche conta a estória de um insensato que sai em praça pública procurando por Deus para, diante da indiferença dos questionados, declará-lo morto.

Como se sabe, Nietzsche estava falando do fim de uma época onde tudo era explicado a partir da revelação divina. Era o estertor do imaginário medieval e o crepúsculo do pensamento moderno, em que o Deus judaico-cristão cedia espaço para a ciência.

Participo de um grupo em rede social formado por ateístas e agnósticos, atendendo a convite de um de seus membros.

Fui apartado por um terceiro, que acompanha aquele grupo, mas não é ateu. Indagou sobre como “perdi a alma”, como ocorreu essa “reconversão”, uma espécie de epifania reversa, mediante a qual passei a “crer” na não existência de um criador de tudo e de todos.

Aqui respondo, mas não como um desagravo ou justificativa especificamente endereçada. Minha manifestação, em sentido diverso, é pelo apego ao diálogo com todos aqueles que queiram tratar do tema, ateístas, agnósticos ou teístas.

Tenho a dizer que o meu ateísmo não é um “ato de fé”, uma crença ou uma escolha, muito menos um movimento contra à fé religiosa. Não tenho a pretensão de matar o Deus de ninguém! Na verdade, trata-se de uma compreensão de mundo, feita a partir de uma perspectiva filosófica materialista, e, de certo modo, lastreada no acúmulo de conhecimento produzido pelo avanço da ciência.

Aqui no Bilhetes vou abordar o tema no campo filosófico, falando do materialismo. De forma breve e, por isso, superficial, como exige uma crônica.

Início dizendo que não há como tratar do materialismo sem dizer da sua contraface, o idealismo.

Grosso modo, a diferença clássica entre materialismo e idealismo encontra-se na ordem que se dá o surgimento do material e do “imaterial”.

Para o idealismo, a ideia é a primeira causa de tudo o que existe, de tal sorte que veio antes e, assim, produziu a matéria. A matéria é um acidente ou uma corporificação do espírito. Segundo esse entendimento, o pensamento e as ideias são os responsáveis pela existência de tudo o que foi elaborado pela humanidade, independentemente da realidade material.

Para o materialismo, primeiro surge a matéria, depois a ideia, esta como um atributo daquela. Todo o existente está na matéria e na natureza. O próprio pensamento é o resultado da organização da matéria. A concepção materialista reconstrói o passado e projeta o porvir pela materialidade de fatos e efeitos.

Na visão materialista, todo o conhecimento produzido e acumulado pela humanidade só foi possível a partir das atividades práticas (primeiro a prática, depois a teoria), decorrentes das necessidades de organização da própria existência.

No idealismo prevalece o plano ideal, formado por entidades metafísicas, transcendentes e imateriais, quais sejam, as ideais, conceitos e formas eternas e imutáveis, que controlam o plano material, este último sendo apenas a cópia imperfeita daquele. Há uma arché, um princípio que deve estar em todos os momentos da existência de tudo no mundo, no começo até o fim, principio pelo qual tudo vem a ser.

Já no materialismo, em sentido contrário, a primazia é da materialidade, sem a qual não haveria base para as ideias, as ideologias, o conhecimento, a tecnologia, etc.  

Nessa linha de entendimento, umas das conclusões possíveis é que a “consciência” (e a inconsciência), as ideias, a ideologia, o espírito (espírito em seu sentido Filosófico), a cultura, as leis, o conhecimento acumulado, ou seja, a “superestrutura”, não se trata de um mero reflexo da matéria, mas de um atributo seu.

No entanto, a materialidade do mundo não se resume à matéria, ou seja, a tudo aquilo que tem massa ou que é corpuscular (aliás, a matéria exibe propriedades tanto de partícula como de onda), possui volume e ocupa lugar no espaço (e no tempo). Engloba a energia (que não é somente é a capacidade de causar a mudança ou fazer o trabalho, tratando-se de um atributo da matéria; de acordo com Einstein, matéria e energia são equivalentes, uma se transformando na outra), energia negra, etc. e o próprio espaço-tempo.

Dito de outra forma, todas as coisas são compostas de matéria e todos os fenômenos são o resultado de interações materiais, cujo teatro de movimentação é o espaço-tempo. Aquilo que vulgarmente chamamos de imaterial, o fenômeno superestrutural, não é uma ausência da matéria, mas um atributo seu ou um nível superior de sua própria organização.  

Para o idealismo, a matéria é criada (ou destruída) a partir de uma nada material (pelo mundo das ideias ou por um ser sobrenatural). Para o materialismo, por sua vez, toda a matéria sempre existiu, porque, como disse Lavoisier, na natureza “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” (lei da conservação).

Na concepção materialista, tudo é physis, sempre em transformação, segundo regras de causa e efeito, no espaço-tempo.

A matéria mais organizada, em forma de consciência, é physis, mas também é nomos.

A physis segue as leis da natureza. A natureza e suas leis subsistem independentemente de consciência humana.

Mas o homem, que se submete à physis, também cria o nomos, que são as leis humanas, aqueles leis que os homens dão a si próprios (e muitas vezes nem sabem – e ai temos a heteronomia, que se contrapõe à autonomia).

O nomos não são leis derivadas do mundo das ideias ou de um Deus, mas da práxis, das relações que os homens mantém entre si (em sociedade) e com a natureza para a sua própria existência. Relações contraditórias (dialéticas).

A natureza, que inicialmente era um meio de subsistência do homem, com o tempo passou a integrar o conjunto dos meios de produção. Por assim dizer, a natureza foi “socializada”, pois sobre ela há uma prática humana organizada, que se de desenvolve no curso da História.

E ai temos as formações sociais e econômicas que se sucedem, como o escravismo, o feudalismo e o capitalismo (até aqui), havendo sobre elas uma “institucionalização” que lhe da legitimidade (para bem e para mal), compreendendo a cultura, as normas jurídicas e morais, a estética, o conhecimento, etc.

Nesse desenrolar histórico, não há intervenção sobrenatural, mas práxis humana. Há a physis e o nomos.

Leio agora no Valor Econômico (ver aqui) que um lote de 5 milhões de doses da vacina de imunização da Covid-1,9 fabricada pela Bharat Biontech, da Índia, ao preço de R$ 800 as duas doses, está sendo comprada por consumidores finais aqui Brasil.

Na lista de quem encomendou, aparecem juízes federais do Rio Grande do Sul (sirvam nossa façanhas de modelo a toda Terra).

Dia desses, o presidente Bolsonaro já havia aprovado a comercialização de 33 milhões de doses da AstraZeneca, que também poderão ser utilizadas fora do SUS, ainda que uma fração. Assim, os ricos se safam com a ciência, aos pobres sobra o curandeirismo oficial da cloroquina!

O viés que exploro aqui não é de ordem legal, mas moral. Diante da dificuldade de o SUS adquirir os imunizantes suficientes para atender a demanda da população brasileira, a grande maioria pobre, é moralmente admissível que essa “mercadoria” escassa (não tem produção suficiente, pelo menos no momento), seja comercializada diretamente ao “consumidor” abastado, ainda que não integre nenhum grupo prioritário?  A conduta não passa a ser imoral na medida em que viola a ordem de grupos prioritários definidos no plano nacional de operacionalização da vacina contra a Covid-19?

Para responder essa indagação “prática”, o filósofo Immanuel Kant recomendaria engendrar uma lei que tivesse validade universal. Como? Estabelecendo uma máxima – o que fazer? – e depois a lei moral, produto da contradição expressa na máxima quando sai do particular para o universal. Com a lei, seria possível estabelecer a ação/conduta moral.

Assim, diante da elaboração da máxima “posso matar outro homem?”, aparece a contradição “nenhum homem vivente, por mais que mate outro homem, aceita ser morto”. Ou seja, se não aprovo que me matem, não posso sair por ai matando os outros, ainda que isso seja do meu interesse particular! Eis a lei!

Trazendo essa esquematização para o caso aqui discutido, teríamos a seguinte máxima: se tenho dinheiro para comprar o imunizante escasso, posso desrespeitar a ordem de grupos prioritários, por ser esse o meu interesse particular? Ora, se não admito que outro afaste o critério de prioridade de grupo porque isso me prejudicaria (caso integrasse grupo de risco), não devo, sob o ponto de vista moral, beneficiar-me do expediente de furar a fila só porque tenho dinheiro para tanto!

Claro, como esclarece Jürgen Habermas, qualquer reflexão mais profunda sobre o agir moral exige a participação na discussão de todas as partes concernidas, o que não é possível aqui nesse espaço.

No entanto, posso assumir o risco de dizer que, para uma parcela da pequena burguesia (e da burguesia) brasileira, não há qualquer problema moral nesse comportamento de desconstruir o critério da priorização de grupos na ação de imunização para a Covid-19.

E também não estou surpreso. Por vários motivos. Vou citar os dois mais perceptíveis:

(i) O governo brasileiro, na figura de seu presidente negacionista e obscurantista, seguidamente emite sinais claros que a melhor diretriz moral para a pandemia é “cada um por si”, até porque os cidadãos de bem e de bens tem seus méritos, vão sobreviver. Sinalo que a aplicação do plano nacional de operacionalização da vacina contra a Covid-19, contendo critérios de priorização por grupos, de certa forma foi uma imposição do STF (além de ser uma construção intelectual e técnica de servidores público da área da saúde e de representações da sociedade civil/grupos profissionais). Caso dependesse exclusivamente do Bolsonaro, talvez ainda estivesse engavetado.

(ii) Na formação social e econômica capitalista, quando o Estado é afastado da regulação, omitindo-se na fixação de regras claras de proteção aos hipossuficientes e cedendo espaço para o “mercado”, acaba por prevalecer o laissez faire, laissez aller, laissez passer. Nesse ultraliberalismo, o interesse do “mais apto” (de quem tem dinheiro, poder econômico) se impõe. Prevalece o utilitarismo, concepção segundo a qual a regra de conduta tem validade se é útil e dá prazer ao indivíduo (e só por extensão ou mediatamente vai atingir a coletividade).

A falta de ação regulamentar do governo é uma das fontes do caos que se formou, inclusive no campo moral. Inaugura-se, assim, uma barbárie institucionalizada, que vai sendo naturalizada pelo poder político e pelo poder econômico.

P.S.: os canalhas golpearam a Dilma com discurso moralista. Recentemente Dilma respondeu com conduta fundamentada em regra moral universal, ao não aceitar a violação da ordem de grupos prioritários!

Arbeit macht frei, “o trabalho liberta”, portão de entrada em Auschwitz

Dia desses foi objeto de ampla de controvérsia nas redes sociais e na grande mídia empresarial a iniciativa de vereadores negros do parlamento municipal da capital gaúcha, que se recusaram a cantar o hino sul-rio-grandense por conta do verso que diz ‘povo que não tem virtude acaba por ser escravo’, considerado pelos insurgentes como racista, na medida em que justifica a escravidão.

Nas redes sociais as opiniões se dividiram. Para muitos, a “intenção” do verso, numa interpretação literal (ou sistemática em relação aos demais versos) não é exaltar a escravidão, mas chamar a atenção para uma consequência da falta de “virtude”.

No meio do alvoroço argumentativo, optei por prestar apoio à conduta de rebeldia dos vereadores, principalmente em razão de a Revolução Farroupilha, movimento no qual se funda o hino – ter servido muito mais aos interesses de estancieiros escravocratas do que às bandeiras republicanas e libertárias. Sem falar do massacre dos Porongos, em que mais de 100 soldados negros foram emboscados e chacinados (vide aqui)

Pois bem, baixada a poeira, ainda mantenho o arrimo.  

E para tanto, trago outro exemplo histórico de como a linguagem é capaz de criar significações distintas, a depender do contexto vivenciado por determinados segmentos de “receptores” da “mensagem”.

O governo da República de Weimar, para fazer propaganda dos efeitos do programa de grandes obras públicas que desenvolveu para combater o desemprego na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, empregou largamente o slogan “O trabalho liberta”, de modo que foi “institucionalizado”.

Com a ascensão do nazismo, a frase não foi inteiramente abandonada, mas ressignificada em função da sua utilização para outro propósito. Com efeito, passou a ser exposta na entrada da grande maioria dos campos de concentração nazistas, como em Auschwitz, na Polônia. Com ou sem intenção de quem determinou a sua utilização, a frase assumiu simbolicamente a característica de desmerecer o povo judeu, justificando os trabalhos forçados e, depois, a matança.

Assim, a expressão “O trabalho liberta”, que numa interpretação literal – e até pelo emprego dado pela República de Weimar – espelha um sentido “virtuoso”, pelo desenrolar histórico assumiu conotação tétrica para os judeus submetidos aos campos de concentração e de extermínio, e que sobreviveram, não havendo como dissociá-la do Holocausto, integrando de forma definitiva a estética nazista.

Por isso, em maio de 2020 o rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), Michel Schlesinger, criticou duramente a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), por publicar a seguinte mensagem: “O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil“.

Segundo o rabino, a mensagem teria uma construção próxima ao slogan do nazismo “O trabalho liberta”, agredindo assim a memória de vítimas do Holocausto e ofendendo a sensibilidade dos sobreviventes (ver aqui).

Leio no Conjur texto do juiz do Trabalho Otávio Torres Calvet, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP e presidente da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho, festejando recente decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADC 66, que declarou a constitucionalidade do art. 129, da Lei 11.196/2005, sendo que uma das consequências possíveis é o sepultamento da presunção da relação de emprego (acesse o texto clicando aqui).

Vou contextualizar. Seguidas decisões da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal têm afastado a aplicação do dispositivo (art. 129, da Lei 11.196/2005), sob o fundamento (a meu ver acertado) de que as empresas burlam o Fisco e flexibilizam normas trabalhistas por meio da chamada “pejotização”. Para combater estas decisões, a Confederação Nacional da Comunicação Social ajuizou a ADC 66, logrando êxito.

Embora o dispositivo em questão trate precipuamente de um tema tributário, a fundamentação da decisão do STF sinaliza a legitimação da chamada “pejotização”, cuja finalidade, todos sabem, é precarizar as relações de emprego.

O articulista Calvet esclarece que a decisão não afeta o princípio da primazia da realidade. Ou seja, se a contratação da pessoa jurídica é uma fraude que busca mascarar uma relação de emprego, a Especializada vai reconhecer o vínculo celetista e assegurar o “contrato mínimo” previsto na CLT.

No entanto, segundo o entendimento de Calvet, algo mudou. O articulista esclarece que a decisão do STF:

 “(…) indica que, nas ações em que se alegue fraude no uso de pessoas jurídicas ou em outras novas formas de organização do trabalho humano, não há de se presumir a referida ilicitude e, portanto, inviável a distribuição do ônus da prova a favor do trabalhador”.

Desse modo, não vai mais bastar ao trabalhador provar que laborou para o empregador – fato que se demonstrado acionava a presunção de emprego. Também terá de comprovar a fraude, uma tarefa hercúlea.

Portanto, se o trabalhador alegar em juízo que a sua pejotização foi uma fraude, exigência para poder vender a sua mão-de-obra com custo menor para a empresa contratante, não será mais incumbência do empregador provar a inexistência da ilicitude, ainda que o labor prestado seja incontroverso.

Com a decisão, o STF legitima – diz que a nossa Constituição autoriza – o aprofundamento da precarização das relações de trabalho, uma resultante da “liberdade econômica”, valor que se hegemoniza.

Mas liberdade econômica para quem? Para os assalariados, que só tem a sua mão-de-obra e trabalho intelectual para vender? Evidentemente que não! Quem vende e quem compra a mão-de-obra não são iguais (materialmente). Quem compra a mão-de-obra, via de regra, tem poder econômico e político! E na execução do contrato, tem poder hierárquico. Não é uma relação entre pessoas com o mesmo grau de liberdade e de necessidade!

Ainda que se crie um regime jurídico que transforme todos assalariados em pessoas jurídicas, nada vai mudar o fato material e social de que estes pejotizados vendem a sua mão-de-obra e que seu labor gera mais valia, operação que “valoriza” o Capital. Estes trabalhadores, ainda que pejotizados, não são donos dos meios de produção – e nem chegarão a tal condição!

Ora, a balança da Justiça, seguindo o que já ocorre com os outros dois poderes da República, vai abandonando a defesa dos direitos sociais, em especial os trabalhistas, para permitir que a crise econômica (mundial) não afete o Capital, o que faz assegurando mecanismos para sua “valorização”, que se dá pelo aumento da extração da mais valia (e, indiretamente, pela desvalorização do próprio trabalho “improdutivo”, ou seja, aquele que não valoriza imediatamente o Capital).

Isso traz uma mudança de configuração no Estado, que de bem-estar social, estabelecido pela Constituição Federal Cidadã de 88, transita para o puramente liberal, mais ao gosto da formação social e econômica capitalista vigente.

É a forma jurídica, superestrutural, amoldando-se à base econômica, diria Marx se vivo fosse.

O Dr. Calvet comemora o caminho que se percorre. Argumenta que se trata de um avanço e que isso trará “(…) uma nova regulamentação do trabalho humano que atenda aos interesses sociais e econômicos (…)”, situação que vai permitir evolução “(…) nos compromissos constitucionais de erradicação da pobreza e redução da desigualdade social, construindo uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos (…)”!

Não sei em que mundo vive o Dr. Calvet. Mas aqui na vida real, a reforma trabalhista não trouxe os empregos prometidos, só ceifou direitos dos assalariados, aumentou a fome, a pobreza e as desigualdades sociais. O “bem de todos”, no momento, é reduzido ao bem dos endinheirados, dos donos dos meios de produção e de uma classe pequeno-burguesa que, em sua maioria, reflete as ideias da classe dominante sobre os direitos trabalhistas (e sociais), assegurando sua hegemonia cultural.

No Reflexões à Esquerda, a partir de uma postagem do professor e historiador Luís Henrique Prado de Santis (para acessar a página, clique aqui), toma corpo um interessante debate sobre as transformações pelas quais passa o mundo do trabalho.

Pois a discussão, dentro de sua dinâmica, foi se espraiado em vários subtemas, um deles levantado pelo Fagner Garcia Vicente, a questão da identidade e das lutas indentitárias.

Vou desembridar o debate para cá no bloguinho, abordando a questão da identidade.

Certa feita, o meu querido amigo e mestre Flavio Bettanin fez uma observação. Disse Bettanin: “a lógica metafísica evidentemente tem seus limites porque ela nega o movimento real, que é contraditório e que traz nessa contradição as sementes da mudança, mas não significa que ela não seja útil para o entendimento das coisas, especialmente o desenvolvimento de um discurso lógico, desde que saibamos das suas restrições”.

Por certo não externou sua posição exatamente com estas palavras, aí é pedir demais da minha memória. Aliás, Bettanin certamente reforçará a sua contribuição nas próximas intervenções, dizendo mais sobre a assertiva que lhe atribui a autoria, inclusive para me desmentir, se for o caso.

Pelo princípio de identidade, segundo a metafísica, tem-se que uma proposição é sempre igual a ela mesma, nunca diferente, uma paridade absoluta. Isso implica na imutabilidade da proposição. Desse princípio decorrem outros dois: o da não contradição (algo não é falso e verdadeiro ao mesmo tempo) e do terceiro excluído (uma afirmação ou é verdadeira, ou é falsa, não há uma terceira opção). Como disse Parmênides, “o ser é, o não-ser não é”.

Levando estes princípios para o “movimento real”, sem qualquer mediação, significaria admitir que as coisas no mundo tem uma identidade específica (A é A), sem contradição (A não é B) e que não sofrem mutações (A não será B) – inclusive o próprio movimento não é efetivo, mas só aparência, um resultado da “ideia”. Ora, dentro de uma concepção dialética (e histórica) tais construções metafísicas são contrafactuais, visto que há movimento, há contradição, há mudança e há um devir.  Lembrando Heráclito: “tudo flui e nada permanece, (…) o mundo é um eterno devir”.  

Mas isso quer dizer que não se pode encontrar uma “identidade” nas coisas e no próprio movimento? A é A e não é B na “fotografia” do momento, embora mais adiante possa ser B? Quando defino o que é a dialética, por exemplo, não estou atribuindo uma identidade para a coisa (um significado para o significante)? Quando conceituo classe proletária, não estou atribuindo a ela uma identidade? Claro que esta “identidade” não tem aquele limite metafísico da imutabilidade (A será sempre A), a classe proletária de ontem não é a mesma da de hoje, nem a de hoje será idêntica à classe proletária num futuro mais distante – e nem sempre ela existirá.

Uma mudança possível dentro da identidade de classe, por exemplo, ocorre quando ela toma consciência de sua situação dentro do “movimento real”, assumindo a identidade de “classe para si”. Assim, nesse aspecto, entender sua “identidade” de classe (que também implica. de certo modo, alterar a identidade anterior), não como uma identidade metafísica, imutável, não contraditória, faz parte do processo de tomada de consciência existencial, política e, principalmente, material.

Assim, a luta da classe proletária (da classe trabalhadora, da classe assalariada, da classe que pelo seu trabalho “valoriza” o Capital ou contribui “externamente” para a valorização Capital – falo aqui do trabalho improdutivo), enquanto movimento, também é, em certo sentido, uma luta identitária e anticapitalista.

Talvez seja um equívoco do pensamento materialista negar-se a investigar as questões ontológicas que se apresentam, omissão que decorre do receio de ser confundido com a cepa metafísica.

(Texto sem correção ortográfica, que fica a cargo do leitor)

Emilly e Rebeca sendo sepultadas

Mas uma crônica sobre o óbvio. Um óbvio abraçado pela nova normalidade e pelo interesse econômico, que por isso mesmo vai para a pasta da desinformação e do desinteresse.

O assassinato, na sexta-feira, de duas primas pobres e negras, Emilly (4 anos) e Rebeca (7 anos), baleadas quando brincavam na porta de casa em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, é mais uma demonstração de que as políticas de segurança pública são voltadas para resguardar brancos e “cidadão de bens”. Negros e pobres não entram na equação de segurados pelo Estado, até porque são considerados o “inimigo no outro lado da trincheira a ser abatido”, na visão militarista dominante.

Familiares das vítimas afirmaram que a polícia atirou nas meninas. “Estava chegando do trabalho e saltei do ônibus. Eu escutei no mínimo dez disparos. O ônibus passou e a blazer estava parada e deu aquele arranco para sair. Ele parou em frente à rua e simplesmente efetuou os disparos”, contou para a imprensa a avó de Rebeca, Lídia Santos.

A PM, por sua vez, negou ter feito qualquer disparo, alegando que estava patrulhando naquele local, quando ouviu os estampidos e foi averiguar.

O caso tem se ser apurado com rigor, é o que se espera. Mas o risco é pelo inconcluso.

Segundo a ONG Rio de Paz, desde 2007 até agora, 79 crianças foram mortas vítimas de armas de fogo no Rio de Janeiro, a maioria delas por balas perdidas. Neste ano, já são 12 o número de crianças mortas por armas de fogo naquele Estado.

Mas o problema não é restrito ao território fluminense.

De acordo com dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Brasil teve ao menos 4.971 crianças e adolescentes mortos de forma violenta em 2019, Desse total, ¾ eram negros (dados são referentes a 21 estados, contemplando 85% da população brasileira). Um detalhe: estas quase 5 mil mortes de crianças e adolescentes foram retiradas de um universo que contabilizou 47.773 mortes violentas no ano passado, mas que não incluiu 13.705 mortes de brasileiros porque não foram esclarecidas.

Quando crianças negras e pobres são mortas, como no caso de Emilly e Rebeca, sempre surge a expectativa que a grande mídia empresarial, que movimenta a opinião pública e a opinião publicada, dará voz aos movimentos sociais e ONGs, fomentando um debate de longo curso sobre política de segurança pública voltada para estes brasileirinhos, além de discutir a violência em geral e o necessário desarmamento.

Também se espera que a sociedade desperte para o problema e cobre das autoridades públicas soluções. E que os detentores de mandatos eletivos, com coragem, assumam um compromisso maior com a causa destes meninos e meninas, criando políticas integrais (desde a segurança pública, passando pela saúde, educação e desembocando na geração de renda e emprego para as famílias).

No entanto, fica tudo como dantes no quartel-general em Abrantes. A imprensa trata do tema sem qualquer profundidade, aborda o fato em si, mas nega-se a classificar estas mortes como resultado de uma política de segurança pública  e de uma política econômica equivocada, classista e racista, depois de dois ou três dias “arquiva” o tema. Os crimes não são elucidados, na grande maioria das vezes. As autoridades públicas mantém conduta de indiferença diante do problema. Panelas não são batidas. Comoção somente entre membros da família e vizinhos.

Assim, segue-se com uma política de segurança pública racista e violenta, cujo “cliente” é o branco e o rico, dentro de uma contexto de economia voltada para concentração de renda e exclusão social. A barbárie vista como “normalidade”.

Mudando um pouco o sentido da frase da campanha presidencial de Bill Clinton, iIt’s the economy, stupid (é a economia, idiota), caso discutir a morte de crianças pobres e negras desnude o sistema econômico de exploração e de exclusão social, melhor não fazer esse debate! Assim pensa a elite econômica brasileira.

General Pazuello e o seu superior

Leio agora na mídia empresarial que o ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello, não anuncia um plano nacional de imunização, fixando uma estratégia de vacinação para prevenção da Covid-10, a ser executado pelos Estados e Municípios assim que uma vacina for disponibilizada, porque teme reação depreciativa do Bolsonaro, seu “superior”.

De fato, Pazuello não age porque não suportaria nova humilhação. Bolsonaro, todos lembram, já desautorizou o general publicamente, como no episódio do recuo de contratação da coronavac, a vacina chinesa. Ali foi “a deixa” para Pazuello preservar sua dignidade e pedir o boné.

Embora com formação militar, Pazuello tem se mostrando um ministro despreparado para o “combate”. É medroso e omisso, não toma iniciativa, esconde-se atrás de uma mesa. Um general sem autoridade, que não enfrenta o negacionismo de Bolsonaro e não dá um rumo para a política nacional de combate à Covid-19.

O Brasil supera 6 milhões de casos de Covid-19, com mais de 169 mil mortes. Mas quem fala da pandemia no governo Bolsonaro é o Paulo Guedes (para negar a gravidade), não o responsável pela área da saúde!

E agora uma segunda onda da pandemia está no horizonte, mas os brasileiros não escutam a voz do ministro da Saúde, que sequer dá o ar da graça para prestar constas do não aproveitamento dos testes de Covid-19, que se encaminham à ultrapassagem do prazo de validade.

Aliás, não há justificativa aceitável para o Pazuello estocar mais de 6 milhões de testes para o diagnóstico da COVID-19, abandonados num armazém em Guarulhos, que perderão a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021. Qual a razão, afinal, para não distribuir estes testes no SUS/municípios? Ordens do Bolsonaro? E quem vai ressarcir a União pelos prejuízos, já que cada teste, considerado “ouro” pela qualidade, custa quase R$ 400,00 (quatrocentos reais) na rede privada?

O general Pazuello mais parece um zumbi, perambulando pelos corredores do Ministério da Saúde sem se dar conta que já é um ministro cujo prazo de validade caminha para o vencimento, tais quais os testes da Covid-19 sob sua responsabilidade.

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